Filmes com criança são fofos.
Eu sei, você sabe, todos nós sabemos.
Não precisa muito:
Um sorrisinho, uma brincadeirinha, um comentário puro e inocente, o câmera fechada naqueles olhos infantis e lá estamos nós, sorrindo feito bobos ou nos debulhando em lágrimas, pensando assim: que fofo!
Acho que o primeiro que inaugurou essa leva foi o Cinema Paradiso. O maravilhamento do cinema sob o olhar do menino, e como são expressivos os olhos das crianças!
E então veio a farra: o holocausto sob o olhar da criança, a guerra sob o olhar da criança, a ditadura brasileira sob o olhar da criança, a ditadura argentina sob o olhar da criança, a política sob olhar da criança... façam suas listas.
Outro dia, vendo a lista dos filmes mais badalados, quase caí para trás: ou eram filmes para crianças ( maravilhosos: desde o surpreendente transformers até o maravilhoso ratatuille) ou eram filmes com crianças como protagonistas. Essa coisa fofa e linda que é mostrar o mundo através do olhar infantil.
Ok, alguns são terríveis, aterrorizadores mesmo.
O Labirinto do fauno talvez seja o exemplo mais acabado disso: mesmo o mundo encantado da criança é um mundo de sombras, onde o bem e o mal não são facilmente distinguíveis, onde são pedidas provas cruéis, pessoas morrem e tudo o mais.
Crianças sofrem muito, e não são santas nem boas. Os bons filmes, e as boas narrativas com crianças, não se esquecem disso.
Mas...
Outro dia comprei o cedê do pato fu: daqui pro infinito. Um cedê pop gostoso, bom de ouvir no carro. E lembrei do Arnaldo Antunes, e lembrei da Adriana Calcanhoto e fiquei pensando: eles fazem música para criança ou para adulto?
Eu adoro música de criança, me acabo cantando Os Saltimbancos, mas... na minha época, música de criança era vendida como música de criança. Me assusta um pouco, adultos ouvindo músicas de criança.
E a maioria dos leitores de Harry Potter também é adulta, assim como os espectadores dos filmes da Disney e Pixxar, assim como os espectadores do Senhor dos Anéis e assim como assim por diante.
Ok, talvez as produções voltadas para o público infantil e adolescente sejam mesmo melhores que aquelas voltadas para o público dito adulto, mas eu fico achando, fico achando mesmo, que há algo de... senão podre, muito estranho no Reino da Dinamarca.
Tudo isso porque fui ver o filme
A culpa é do Fidel.O trailer é sensacional ( ok... eu continuo acreditando em trailers...) e a idéia, ótima:
Uma garotinha francesa, feliz e burguesa, vê sua vida progressivamente ser arruinada à medida que os pais se politizam, viram comunistas e envolvem-se com as políticas da década de sesseta, setenta. Logo ela passa a ganhar de presente roupas estranhas e coloridas, bordados de flores, gorros peruanos. Logo ela perde sua babá querida, exilada cubana, e passa a ser cuidada por babás esquisitas, exiladas de países como o Vietnam, China ou Grécia, que lhe servem comidas estranhas com ingredientes exóticos e ignoram o bom e velho pain au chocolat. Pior: ela muda-se para uma casa menor que logo é invadida por homens barbudos que não param de fumar cigarros esquisitos, é tirada da aula de catecismo, e logo passa a ter vergonha de levar suas amiguinhas para dormir em casa.
Fui ver, porque afinal tem a ver também com a história da minha vida. Estudei numa escola alternativa onde as meninas chamavam-se Inaê, Erecê, Ialê... ( sempre confundia as três) , e os meninos: Caê, Cauã, Tom e Gil. Havia até uma Luz Morena. Juro. Chamar Luana era tipo normal.
Fui a comícios quando pequena, fiz muita boca de urna quando criancinha, lembro com emoção do povo reunido na minha casa, se preparando para ir ao comício das diretas já, tinha - e tenho - medo de polícia. Lembro, também com emoção, quando minha mãe foi votar pela primeira vez e me levou junto, e me mostrou o que era o voto e a democracia. Meus pais tinham amigos torturados, exilados, desaparecidos. Tenho um primo querido que nasceu no Chile e cresceu no exílio, um tio que foi procurado vivo ou morto. Meu avô, que ensinava russo na Universidade, foi preso várias vezes. Cresci em meio a discussões políticas, cantei muita música revolucinária, aprendia lições de marxismo e socialismo, noções de igualdade e luta, usava sainhas indianas desde pequena, e burguês para mim era uma espécie de xingamento bem sujo. Todos, a minha volta, eram barbudos, e minha mãe usava umas jóias de prata africanas que acho lindas até hoje.
Enquanto meus amiguinhos iam para a Disney, passava as férias no Peru, na Bolívia, na praia de pescadores de não sei aonde, nos confins do Piauí.
Ganhei e usava gorros peruanos e sainhas indianas desde criança, tinha amigos que levavam tofu e bardana de lanche para a escola e morria de vergonha de ver minha mãe dançando Gal, descalça na sala, como se não houvesse amanhã. Minhas músicas de infãncia são Tom Zé, Caetano, Novos Baianos, Gil e assim por diante. Só ouvi falar de deus pelas empregadas, bastante preocupadas com meu destino pós mortem.
Aprendi desde pequena a valorizar a política, a liberdade, o pensamento, a luta por um mundo justo, as artes, as vanguardas artísticas, o amor, a paz, essas coisas.
Fui conhecer meu primeiro malufista só aos quinze anos de idade.
Juro.
Quando criança, brincava de fazer greve. Uma vez fiz até uma passeata com uma amiguinha: "edo, edo , edo, não queremos dormir cedo!"
Tinha que ver aquele filme.
Fui.
Há cenas boas, identifiquei-me com várias situações, ri um pouco e tal. Mas...
Alguma coisa me incomodava, e conversando com a Ana Paula, uma das amigas brilhantes que tenho, percebi o que era:
esses filmes com crianças acabam, ao final, se eximindo da crítica, e mesmo da política.
Vejamos, por exemplo, O Labirinto do Fauno, o melhor filme dentro desse gênero, dentro dessa última leva:
há duas histórias paralelas que correm no filme:
a história dos adultos, sob o fascismo e a brutalidade franquistas, representada pelo espaço da casa e pela figura do Capitão, atento ao seu relógio quebrado, às regras, à procriação, à manutençao do regime. Dentro desse espaço, há aqueles que buscam caminhos de luta dentro da própria casa (o caso de Mercedes, a governanta, dona das chaves da despensa, que quer cantar uma cantiga de ninar para a menina mas esqueceu-se da letra; ou do médico, que envolve-se mesmo que tardiamente, pois não há neutralidade possível dentro de um regime de exceção) e há aqueles que lutam na floresta, organizados em grupos políticos subversivos. Esse é o plano da História, aquela política e social, feita pelos homens e mulheres.
Há, também, a história da criança. A menina desde o início carrega consigo um livro de contos de fadas e logo na primeira cena vê, na floresta, indícios de um mundo mágico e encantado. O plano da história, sob olhar da criança, mescla-se com o plano da fantasia, do mito, da narrativa mágica.
Logo aparece a figura do fauno, e à narrativa histórica, que ocorre no plano da casa e se estabelece sob o conflito do filho do Capitão que está para nascer e a busca pelos subversivos escondidos na floresta, mescla-se a narrativa mágica, que se estabelece sob as tarefas que a menina princesa deve cumprir para restituir seu lugar de princesa e reestabelecer a ordem a e harmonia no plano mágico. São duas espécies de luta que correm em paralelo. Em jogo: a liberdade e a vida.
O labirinto do fauno é o labirinto da história, e nele se enlaçam os fios da narrativa dos homens e mulheres e os fios da narrativa mágica.
Não interessa, é claro, se o plano mágico é somente fruto do delírio da menina imaginativa ou se acontece "de verdade". No cinema é tudo "representação", mesmo os filmes baseados em fatos reais são de mentirinha, e isso - a suposta veracidade do mundo narrado - não é critério para analisar obra de arte alguma.
Ao final, a luta política é massacrada, morre o Capitão e morrem também os Revolucinários. Esses são os nossos tempos, a gente fica se perguntando se a luta política morreu, e eu fico achando isso perigoso, muito perigoso. A saída que o filme apresenta, e o filme apresenta uma saída, é no plano mágico, onde a menina ainda vive, restitui seu lugar de princesa e tudo. No plano da história o bebê é o único sobrevivente e será criado por Mercedes, que não lhe contará sua verdadeira história e poderá criar outra, quiçá mais feliz. O filme não abdica da complexidade e aí está um dos seus gandes méritos. Mas o final da história está no plano mágico, da criança, único lugar possível de harmonia, onde cada personagem pode ter seu lugar na História. Do labirinto da história, aquela real, não há saídas, apenas massacre e violência. Um bom filme, que faz pensar e não abdica da complexidade. Um filme também desencantado com os rumos da história e da política, como tantos filmes nossos contemporâneos, um pouco como nós.
Parece que as atuações políticas possíveis e que fazem sentido no mundo de hoje estão no campo da ecologia, da ação individual, da formação de pequenos grupos que vão lutar por seus direitos específicos. É claro que ficamos descrentes na política, nos políticos, nos partidos, nas revoluções e etc. Isso pode ser um sinal de crescimento, mas parece-me um pouco perigoso. Triste, e perigoso, pois as grandes estruturas que oprimem sim e transformam todos os aspectos da vida e a própria vida em mercadoria, objeto vendável, permanecem as mesmas, não importa quão ecológicos ou politicamente corretos sejamos. Sim, meus amigos: a lulu acha que o velho Marx estava certo . Não nos prognósticos, mas no diagnótico o cara acertou bem. Além de lutar pelo nosso jardim, nossa liberdade de amar e ser e nossas galinhas felizes, há que se manter em vista as grandes estruturas. Elas não são naturais, são opressoras e podem, talvez, ser mudadas.
Isso porque o que me incomodou no filme A culpa é do fidel é justamente uma espécie de descompromentimento com a política e o mundo dos adultos que esses filmes atuais narrados sob a perspectiva de olhos infantis acabam por criar.
A criança não pode fazer nada para mudar o mundo. à criança são dadas explicações simplistas, a criança não tem escolha, não vota porque simplesmente ainda não tem condições de decidir-se por determinadas políticas ou candidatos. A criança percebe um monte de coisas legais sobre o mundo e o ilumina mas é criança, não pode se comprometer nem fazer escolhas.
Quando eu brincava de polícia e ladrão, sempre brigava com meus amiguinhos e amiguinhas sobre quem seria o ladrão. Ninguém queria ser polícia.
é uma cena fofa.
Vamos combinar: nada complexa.
Agora, com o tropa de elite, meus alunos brincam de ser polícia. Normal, crianças. E os adultos?
Com o tropa de elite, brincam de ser polícia também. Cansei já de ver professor imitando o Capitão Nascimento.
O bom da Mafalda, uma grande personagem infantil, é que ela sempre colocava os adultos em situações de constrangimento. Alienada era a Suzanita, cujo projeto era ser mãe e ter muitos filhos. Mas mesmo a Suzanita ocupa um papel importante, importantíssimo, no mundo da Mafalda, pois se somos muito Mafaldas, vamos confessar baixinho que também temos um lado Suzanita. Ou não. Ou lutamos contra esse lado. Mas o mundo é complexo.
O problema de filmes de crianças é quando eles abdicam da complexidade e da crítica. Quando tudo torna-se uma melodia pop e fácil, boa para se ouvir no carro em meio ao trânsito. Quando as questões de adulto parecem que podem ser resumidas nas respostas das crianças. Quando a estrutura do mundo, por um ato de vontade, parece que pode ser reduzida à perspectiva do olhar infantil.
é fofo.
mas não é assim.