Pensamentos esparsos...
Eu dou aulas há uns dez anos, por aí. Em todas as classes que lecionei, da quinta série ao terceiro colegial, sempre havia pelo menos um aluno medicado. Hiper atividade, depressão, ansiedade, sei lá o quê. Sempre. Pelo menos um. Escolas particulares, classe média paulistana. Uma vez, um menininho da quinta série que não conseguia parar quieto na cadeira me escreveu um bilhetinho pedindo desculpas e se explicando: desculpa, professora... é que eu sou imperativo.
Eu desculpei, e fui conversar. Como é seu dia? Ah, eu vou à escola de manhã, depois volto par casa, fico lá, vendo tevê ou jogando vídeo game, vou pro inglês, volto... Quando você brinca? Ah, em casa, fico desenhando. Quando você corre? Na aula de educação física. Quando você rola no chão descalço, brinca até ficar cansado, joga futebol com os amigos, essas coisas? Ele ficou me olhando, rindo da professora maluca.
Eu sou a favor de remédios, anti depressivos e tal, quando e fato há algum transtorno. Depressão, por exemplo, é doença séria e deve ser tratada como tal. E de fato há muitas crianças deprimidas, hiper ativas, com pânico. Há mesmo. Mas serão tantas? Numa classe de vinte, duas? sempre?
Outra história. Está-se constatando um novo fenômeno social. Um número crescente de crianças com onze, doze e treze anos não mastigam ou têm muita dificuldade em mastigar a comida. Isso mesmo. Comem somente papinhas, purês, sopinhas, vitaminas. Não conseguem mastigar. Não, não há nenhuma impossibilidade física, biológica, simplesmente, não aprenderam a mastigar, não conseguem. É sério. E isso desenvolve sérios problemas na dentição, na formação da musculatura do rosto, do maxilar. Pergunte para o seu dentista.
A planta típica de um apartamento de uma família classe média alta é de uma suíte para cada pessoa da família. Na suíte: computador, devedê, televisão a cabo. Uma orientadora educacional perspicaz uma vez fez uma análise sobre isso: os meninos crescem sem precisar fazer uma negociação. Não negociam o controle remoto, não negociam o uso do computador, não negociam qual filme vão assistir, não negociam o uso do banheiro. Crescem individualizados ao máximo, já que a irmã gosta de ver malhação e o menino quer ver outra coisa, uma tevê para cada um. A estrutura da casa é montada de maneira que ninguém precise dividir nada, nunca. Há cinco suítes minúsculas, mas grandes o suficiente para caber o computador e a tevê, e isso é suficiente.
Uma amiga minha tem três irmãos. A família, de seis pessoas, cresceu numa casa com dois banheiros. Ela acordava todos os dias meia hora mais cedo que todo mundo para poder tomar seu banho com calma. E escapar da briga pelo banheiro de manhã. Uma negociação diária, e assim se aprende a crescer, ceder, viver em sociedade. Sério. Esse negócio de uma privada para cada pessoa da casa estraga as pessoas.
E outro dia li outro estudo interessante mostrando como o uso demasiado do celular diminuía o senso de responsabilidade e compromisso dos adolescentes. É assim: se não há celular e a gente faz um combinado, ele tem que ser cumprido. Pronto. Nos encontramos na sorveteria às seis da tarde. Tá. Conto com você para não sei o quê. Tá. Se alguém fura, não há como avisar, o outro fica na mão, é hiper complicado. Claro que é bom ter um celular, também por causa disso. Você fica preso no trânsito e liga dizendo que vai atrasar. Seu filho não chega em casa, vc liga para saber onde ele está. Mas... Eu reparei, os meninos combinam compromissos assim: você me liga quando tiver saindo, que eu te ligo quando tiver saindo e chegando lá a gente se liga para ver onde cada um vai estar. Não marcam nem o horário do encontro nem o lugar. Juro. Não precisa. Então não fica sendo tão necessário prestar atenção no outro, se adaptar ao que está fora, pois o mundo gira em torno de um ritmo individual. Não tenho nada contra celular, são ótimos e tal, mas de fato há um sentido menor do compromisso, uma necessidade menor da memória. Sem falar dos pais e mães que ligam para os filhos no período de aula, sem constrangimento algum, mas esse é um capítulo à parte.
Um menino está muito acima do peso, deve emagrecer por recomendação médica. No entanto, ele tem, todos os dias, quinze reais para gastar na cantina, o que é um despropósito, já que tudo na cantina dessa escola custa entre 1 e 2 reais. Resultado: lá vão , por dia, uns cinco pedaços de bolo, e assim por diante. Foi-se falar com a mãe. E a mãe explicou que por causa da dieta, só há legumes, saladas e carnes magras em casa, e o menino não gosta, e ela fica com pena, e dá dinheiro para ele comer na cantina. Uma outra havia brigado com a classe inteira. Pediu para a mãe que a tirasse da escola. No dia seguinte estava sendo pedida a transferência.
Outro dia, saiu na Carta Capital um dossiê sobre anti depressivos. O grande anúncio da nova geração de remédios é não somente acabar com a depressão mas também com a dor, a dor corporal e física que muitas vezes acompanha a tristeza.
Agora, me entendam bem. Anti depressivos e tais são fundamentais para quem sofre de fato de depressão ou outros transtornos psíquicos. Ajudam de fato, ainda bem que existem, acompanhados de uma boa terapia realmente ajudam as pessoas. A questão é o diagnóstico. Feito às pressas, de maneira facilitada. Eu como professora fico aflita, pois sempre, qualquer aluno com alguma complicação, agora, é hiper ativo. Ele não é bagunceiro, ou mal educado, ou simplesmente moleque. É hiper ativo ou o que tiver na moda no momento. Os pais respiram aliviados, se eximem da culpa, a escola também, e o menininho cresce medicado.
É ótimo ter tevê no quarto, tudo bem cada um ter o seu computador. No entanto, as famílias conversam pouco, pouquíssimo, pois quando em casa, não ocupam espaços coletivos. Em um documentário sobre o trânsito de São Paulo uma mãe que atravessa a cidade todos os dias para que a filha estude numa escola de elite diz que acaba sendo bom, pois o momento no carro, no trânsito, é o momento de bater papo com a filha, é o momento em que as duas estão juntas, sem mais nada para fazer.
E logo isso também vai mudar, cês não viram a propagando com o carro com tevê para o banco de trás? A família pode viajar tranquilamente para onde for, as crianças não vão mais pentelhar com o famoso: falta muito para chegar? ou com a impaciência, ou com cantoria, berreiro, choro. Ficam ali, vendo tevê durante a viagem inteira, para alívio e respiro dos pais. No carro. Ah, sou contra. Quase tive uma síncope quando vi a propaganda. Sério.
Fazer regime é um saco mesmo, eu mesma fui uma criança gordinha e é dificílimo. Eu entendo a mãe, entendo a dificuldade, não entendo o argumento dado como justificativa: ele não gosta e eu fico com pena. A gente até pode sentir isso, mas não fala, não acha que é isso mesmo. Todos os pais estão mesmo muito ocupados, não há tempo para nada, todo mundo quer sempre o melhor para os seus filhos e tal. E é claro que minhas experiências pessoais como professora não são a regra, mas há uma tolerância cada vez menor para as dificuldades da existência. As soluções procuradas são sempre rápidas, práticas e vão sempre na direção de procurar evitar todo sofrimento. A vivência da crise, da dor, da frustração, é pouco tolerada. Há uma vontade de super proteção, de controle absoluto, de soluções rápidas.
mas... não é assim - se frustrando, negociando, sofrendo - que a gente cresce e se humaniza?
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da obrigação de estar bem. Aqui.
Eu dou aulas há uns dez anos, por aí. Em todas as classes que lecionei, da quinta série ao terceiro colegial, sempre havia pelo menos um aluno medicado. Hiper atividade, depressão, ansiedade, sei lá o quê. Sempre. Pelo menos um. Escolas particulares, classe média paulistana. Uma vez, um menininho da quinta série que não conseguia parar quieto na cadeira me escreveu um bilhetinho pedindo desculpas e se explicando: desculpa, professora... é que eu sou imperativo.
Eu desculpei, e fui conversar. Como é seu dia? Ah, eu vou à escola de manhã, depois volto par casa, fico lá, vendo tevê ou jogando vídeo game, vou pro inglês, volto... Quando você brinca? Ah, em casa, fico desenhando. Quando você corre? Na aula de educação física. Quando você rola no chão descalço, brinca até ficar cansado, joga futebol com os amigos, essas coisas? Ele ficou me olhando, rindo da professora maluca.
Eu sou a favor de remédios, anti depressivos e tal, quando e fato há algum transtorno. Depressão, por exemplo, é doença séria e deve ser tratada como tal. E de fato há muitas crianças deprimidas, hiper ativas, com pânico. Há mesmo. Mas serão tantas? Numa classe de vinte, duas? sempre?
Outra história. Está-se constatando um novo fenômeno social. Um número crescente de crianças com onze, doze e treze anos não mastigam ou têm muita dificuldade em mastigar a comida. Isso mesmo. Comem somente papinhas, purês, sopinhas, vitaminas. Não conseguem mastigar. Não, não há nenhuma impossibilidade física, biológica, simplesmente, não aprenderam a mastigar, não conseguem. É sério. E isso desenvolve sérios problemas na dentição, na formação da musculatura do rosto, do maxilar. Pergunte para o seu dentista.
A planta típica de um apartamento de uma família classe média alta é de uma suíte para cada pessoa da família. Na suíte: computador, devedê, televisão a cabo. Uma orientadora educacional perspicaz uma vez fez uma análise sobre isso: os meninos crescem sem precisar fazer uma negociação. Não negociam o controle remoto, não negociam o uso do computador, não negociam qual filme vão assistir, não negociam o uso do banheiro. Crescem individualizados ao máximo, já que a irmã gosta de ver malhação e o menino quer ver outra coisa, uma tevê para cada um. A estrutura da casa é montada de maneira que ninguém precise dividir nada, nunca. Há cinco suítes minúsculas, mas grandes o suficiente para caber o computador e a tevê, e isso é suficiente.
Uma amiga minha tem três irmãos. A família, de seis pessoas, cresceu numa casa com dois banheiros. Ela acordava todos os dias meia hora mais cedo que todo mundo para poder tomar seu banho com calma. E escapar da briga pelo banheiro de manhã. Uma negociação diária, e assim se aprende a crescer, ceder, viver em sociedade. Sério. Esse negócio de uma privada para cada pessoa da casa estraga as pessoas.
E outro dia li outro estudo interessante mostrando como o uso demasiado do celular diminuía o senso de responsabilidade e compromisso dos adolescentes. É assim: se não há celular e a gente faz um combinado, ele tem que ser cumprido. Pronto. Nos encontramos na sorveteria às seis da tarde. Tá. Conto com você para não sei o quê. Tá. Se alguém fura, não há como avisar, o outro fica na mão, é hiper complicado. Claro que é bom ter um celular, também por causa disso. Você fica preso no trânsito e liga dizendo que vai atrasar. Seu filho não chega em casa, vc liga para saber onde ele está. Mas... Eu reparei, os meninos combinam compromissos assim: você me liga quando tiver saindo, que eu te ligo quando tiver saindo e chegando lá a gente se liga para ver onde cada um vai estar. Não marcam nem o horário do encontro nem o lugar. Juro. Não precisa. Então não fica sendo tão necessário prestar atenção no outro, se adaptar ao que está fora, pois o mundo gira em torno de um ritmo individual. Não tenho nada contra celular, são ótimos e tal, mas de fato há um sentido menor do compromisso, uma necessidade menor da memória. Sem falar dos pais e mães que ligam para os filhos no período de aula, sem constrangimento algum, mas esse é um capítulo à parte.
Um menino está muito acima do peso, deve emagrecer por recomendação médica. No entanto, ele tem, todos os dias, quinze reais para gastar na cantina, o que é um despropósito, já que tudo na cantina dessa escola custa entre 1 e 2 reais. Resultado: lá vão , por dia, uns cinco pedaços de bolo, e assim por diante. Foi-se falar com a mãe. E a mãe explicou que por causa da dieta, só há legumes, saladas e carnes magras em casa, e o menino não gosta, e ela fica com pena, e dá dinheiro para ele comer na cantina. Uma outra havia brigado com a classe inteira. Pediu para a mãe que a tirasse da escola. No dia seguinte estava sendo pedida a transferência.
Outro dia, saiu na Carta Capital um dossiê sobre anti depressivos. O grande anúncio da nova geração de remédios é não somente acabar com a depressão mas também com a dor, a dor corporal e física que muitas vezes acompanha a tristeza.
Agora, me entendam bem. Anti depressivos e tais são fundamentais para quem sofre de fato de depressão ou outros transtornos psíquicos. Ajudam de fato, ainda bem que existem, acompanhados de uma boa terapia realmente ajudam as pessoas. A questão é o diagnóstico. Feito às pressas, de maneira facilitada. Eu como professora fico aflita, pois sempre, qualquer aluno com alguma complicação, agora, é hiper ativo. Ele não é bagunceiro, ou mal educado, ou simplesmente moleque. É hiper ativo ou o que tiver na moda no momento. Os pais respiram aliviados, se eximem da culpa, a escola também, e o menininho cresce medicado.
É ótimo ter tevê no quarto, tudo bem cada um ter o seu computador. No entanto, as famílias conversam pouco, pouquíssimo, pois quando em casa, não ocupam espaços coletivos. Em um documentário sobre o trânsito de São Paulo uma mãe que atravessa a cidade todos os dias para que a filha estude numa escola de elite diz que acaba sendo bom, pois o momento no carro, no trânsito, é o momento de bater papo com a filha, é o momento em que as duas estão juntas, sem mais nada para fazer.
E logo isso também vai mudar, cês não viram a propagando com o carro com tevê para o banco de trás? A família pode viajar tranquilamente para onde for, as crianças não vão mais pentelhar com o famoso: falta muito para chegar? ou com a impaciência, ou com cantoria, berreiro, choro. Ficam ali, vendo tevê durante a viagem inteira, para alívio e respiro dos pais. No carro. Ah, sou contra. Quase tive uma síncope quando vi a propaganda. Sério.
Fazer regime é um saco mesmo, eu mesma fui uma criança gordinha e é dificílimo. Eu entendo a mãe, entendo a dificuldade, não entendo o argumento dado como justificativa: ele não gosta e eu fico com pena. A gente até pode sentir isso, mas não fala, não acha que é isso mesmo. Todos os pais estão mesmo muito ocupados, não há tempo para nada, todo mundo quer sempre o melhor para os seus filhos e tal. E é claro que minhas experiências pessoais como professora não são a regra, mas há uma tolerância cada vez menor para as dificuldades da existência. As soluções procuradas são sempre rápidas, práticas e vão sempre na direção de procurar evitar todo sofrimento. A vivência da crise, da dor, da frustração, é pouco tolerada. Há uma vontade de super proteção, de controle absoluto, de soluções rápidas.
mas... não é assim - se frustrando, negociando, sofrendo - que a gente cresce e se humaniza?
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