sexta-feira, 16 de março de 2007

as cordas de Ulisses

Foi meu pai quem me ensinou, que a gente deve ser esperto como o Ulisses. Uma vez, eu queria fazer uma coisa bem difícil, não lembro mais o que era, regime, mudar de nível na dança, passar no vestibular, sei lá... Não estava conseguindo, e estava hiper chateada com isso. E ele me falou: você precisa das cordas do Ulisses, não pode tentar fazer tudo sozinha, confiando somente na sua vontade.



Foi a augusta Circe quem deu a grande dica para o Ulisses:

"Primeiro, encontrará duas Sereias; elas fascinam todos os homens que se aproximam. Se alguém, por ignorância, se avizinha e escuta a voz das sereias, adeus regresso! não tornará a ver a esposa e os filhos inocentes sentados alegres ao seu lado, porque, com seu canto melodioso, elas o fascinam, sentadas na campina, em meio a montões de ossos de corpos em decomposição, e peles amarfanhadas. Toca para diante; amassa cera doce de mel e veda os ouvidos de seus tripulantes, para que ninguém mais as ouça. Se tu próprio as quiseres ouvir, que eles te amarrem de pés e mãos (...) para te deleitares ouvindo o canto das sereias. Se insistires com teus companheiros para te soltarem, que eles te prendam com laços ainda mais numerosos."
( Homero, Odisséia, canto XII, trad. Jaime Bruna; São Paulo: Cultrix)


O resto da história, todos sabem. Ulisses colocou cera nos ouvidinhos dos seus colegas, mas não em seus próprios, pois sabia que o canto era a oitava maravilha do mundo e queria ouvi-lo. Pediu, no entanto, que o amarrassem bem forte, e que ignorassem seus pedidos e ordens quando ouvisse os cantos. E assim, ele passou ouviu o canto e, amarrado do jeito que estava, resistiu às irresistíveis sereias. E assim ele pôde seguir sua viagem de retorno a sua casa e mulher.

E tem duas ou três coisas legais que eu aprendi com essa história:

A primeira é que não devemos confiar cem por cento e cegamente em nossa racionalidade e força de vontade. Olha só (como dizem os cariocas) o Ulisses sabia que as sereias eram mortais, inclusive, ao lado delas, havia um monte de ossos e peles, claramente daqueles que sucumbiram ao canto. Eu penso assim: ué.. eu sei que esas sereiazinhas aí são assassinas. Eu SEI, portanto não vou me atirar a elas, porque eu não sou boba nem nada, eu heim? , num tem canto de sereia que me faça querer virar um montão de ossos antes da hora. Aí é que está. Somos bobos, ninguém no mundo é tão racional assim, nem tem tanta força de vontade. Eu, por exemplo, sucumbo fácil a uma coxinha de catupiry, o jeito é andar sem dinheiro, ou me afastar para nem sentir o cheiro, ou sei lá o quê. E essa foi a primeira coisa que a Circe ensinou para a Ulisses. É melhor vc se amarrar, antes, se cercar de cuidados, porque a autonomia, a racionalidade, o bom senso e o auto-controle, falham.

A segunda é que é bom que tenhamos gente ao nosso lado, e é importante a gente pedir para elas cuidarem de nós. O Ulisses é o grande herói, muito bacana, espertíssimo, tudo certo, mas ele nunca ia conseguir voltar para o lado da Penélope sozinho. Ele precisa e precisou de ajuda, e soube pedir ajuda, e soube ouvir. A gente precisa sempre de ajuda em nossos caminhos, de um professor, dos pais, de amigos, do nosso orientador, sei lá. No meu mestrado sofri bem mais que o necessário porque achava que tinha que resolver tudo sozinha e só mostrar meu texto para minha orientadora quando esse já tivesse perfeito. E simplesmente não saía do lugar. Quando comecei a ter coragem de ir conversar com ela, pedir ajuda, combinar prazos, pensar a estrutura do trabalho juntas, tudo caminhou de maneira mais fácil.

A terceira é que dá sim para ouvir o canto das sereias. Quer dizer, não precisamos nos fechar e cercar cem por cento, não ver nem ouvir mais nada, não sentir mais nada, porque tudo nesse mundo é tentação e emoção, tudo é desvio da vontade. Eu, heim? É possível ouvir o canto, sem que se perca e se vire uma montanha de ossos aos pés das belas sereias. Dá até para comer uma coxinha de catupiry, vez ou outra, dá para um monte de coisas, é só se cercar de outros jeitos, se cuidar de outros jeitos, não é preciso virar aquelas pessoas chatas que colocam ceras em seus ouvidos para tudo, e não comem, não bebem, não saem, não curtem, não se permitem prazeres.
Basta que tenhamos algumas cordas, que nos segurem e ajudem.
Essas cordas podem ser o compromisso de ir ao médico uma vez ao mês, se pesar para ver se a dieta anda ok (eu acho a coisa mais difícil do mundo fazer regime sem corda alguma) . Podem ser os famosos prazos que nos obrigam a afinal, terminar aquele artigo ou trabalho há tanto tempo guardado na gaveta. Pode ser o castigo que vamos receber se ficarmos de recuperação, sei lá. A calça que queremos que sirva no encontro marcado pro final de semana. Compromissos que temos com gente que precisa de nós.

Sou hiper e profundamente libertária, e não estou defendendo aqui aprisionamentos de maneira alguma, mas também sou hiper exigente e rigorosa comigo mesma e acho que o episódio das cordas nos ensina algo sobre nossa própria falibilidade, e sabendo dela, às vezes inclusive fica até mais fácil entender e lidar com as coisas que não deram certo ou que não conseguimos.

E não há problemas em ter algumas cordas que nos sustentem e equilibrem, e nos ajudem a chegar em casa, ou simplesmente seguir nosso caminho e desejos mais profundos, sejam eles quais forem.

Porque é assim que termina essa parte da história, passadas as sereias, Ulisses teria que escolher seus caminhos, decidir se ia prum lado ou pro outro. Ele ganhara essa possibilidade, de decisão, escolha, de caminhos abertos, e isso é muito legal.



Há muitas coisas legais que essa historinha nos conta.

O que vocês acham?


***

p.s. Juvenal! Te mandei já um e-mail, mas voltou....

11 comentários:

  1. Hm.
    1)E quando as sereias se disfarçam sob pele de cordeiro e te dão a mão e vc cai nessa exatamente por saber que precisa de ajuda?

    2)Gente, eu odeio coxinha! Quer dizer, não odeio odeio, uma coisa ativa. Mas não faço a mínima questão. Acho que retarda a digestão.

    3)Mas bonito mesmo foi quando Ulisses parou pra ouvir Loreley e deu a mão para que ela pudesse andar com as próprias pernas (!)e amar sem matar (nem a si e nem ao outro) no final - Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres...

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  2. Luzinha, tava aqui pensando no meio da chuva de serotonina: quando eu era pequena, eu amava azeite! Meu pai botava uma saladinha no pão com um tiquinho de sal e muito azeite! E eu amava! Se eu chegava na cozinha e ele tava comendo isso, eu pegava o dele pra mim!

    Gente. Onde foi que tudo degringolou?

    Malhei e tô feliz. Beijo k

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  3. acho que a persistencia de Ulisses é mesmo algo muito emblemático.
    A espera de Penélope tb é, mas é mais deprimente.Sei lá, pelo menos eu acho....

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  4. ah, sim, e isso me lembrou (só agora) esse post aqui, de uma amiga:
    http://janelaproceu.blogspot.com/2007/03/num-lago-onde-nadavam-arte-educao-idias.html

    a síntese do post também é grega:
    "não há felicidade onde não existe limite"

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  5. )Mas bonito mesmo foi quando Ulisses parou pra ouvir Loreley e deu a mão para que ela pudesse andar com as próprias pernas (!)e amar sem matar (nem a si e nem ao outro) no final - Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres...

    K, que comentário lindo!!
    Nessa semana vou postar umas receitas de salada com bastante azeite para você fazer em casa, tá?

    Vivien,
    fico achando tudo poético, mesmo a espera da penélope.

    Inter,
    vem!! :)

    JA,
    a ptonisa mandou falar que os desates dos nós estão nas suas mãos.. :)

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  6. Tá! :-)

    Esse final aí do Juvenal tá parecendo as frases da Piauí. Hahahhahaha... Eu ia escrever um micro conto sobre Juvenal e o email que voltou, mas achei melhor não. Não preciso de mais inimigos na net.

    k

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  7. O juvenal parece ser ótimo K, queria trocar figurinha com ele...

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  8. Quem é juvenal, além de um quase personagem de um micro conto? Tem brógui? k

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