A outubrite é um mal que costuma atacar professores em geral. É quando já estamos quase lá no final do ano mas ainda faltam dois meses. Dá uma canseira.
Queria falar sobre Orgulho e Preconceito, da Jane Austen, que estou terminando de ler com a sétima série. Segundo um dos alunos: um livro chato sobre um monte de gente desocupada que só pensa em casamento.
A classe está dividida. Uns amam o livro, outros odeiam, até aí, nada de novo sob o sol, nada que fira o meu orgulho.
Alguns preconceitos meus, inclusive, foram solapados rapidamente. Confesso que escolhi esse livro pensando em duas coisas: na história da procura por livros felizes e nas meninas.
Sim, porque a maioria dos livros clássicos que a gente lê na quinta e na sexta série são livros de aventura com cara de menino. Olhem só: A Ilha do Tesouro, Julio Verne, Edgar Allan Poe... mesmo o do Italo Calvino, O Cavaleiro Inexistente, parece-me ser mais de menino que de menina. Então, decidi dar um romance bem clássico, sobre a vida das pessoas comuns, entretidas, no mais, em casar e também em garantir uma boa renda que lhes permita uma boa sobrevivência.
Para as mulheres, se não há herança em jogo, como acontece com os pobre dos Bennet, a família que protagoniza o romance, resta casar com alguém rico, oras bolas.
Cada livro que leio com meus alunos traz novas discussões.
Por exemplo, quando a gente leu o Cavaleiro Inexistente fiquei uma aula inteira discutindo com uma aluna que estava muito revoltada porque era IMPOSSÍVEL existir um cavaleiro inexistente e que então tudo aquilo era uma bobagem sem fim.
Foi uma discussão linda, sobre justamente o que é, afinal de contas, a literatura.
Na sexta série começamos a ler o que eu chamei de primeiro livro de gente grande deles, Capitães da Areia. É bem engraçado, e depois quero falar mais sobre isso, porque no livro tem um monte de sacanagem. São dois os temas principais que surgem: o da liberdade e o do sexo. Liberdade porque sempre, sempre, tem um ou dois meninos na classe ( e geralmente são meninos) que ficam realmente invejando a vida dos capitães da areia. Que não queriam ir para a escola, que não queriam ter pai e mãe dando bronca, que queriam viver de brisa e assaltos ocasionais, em liberdade. As discussões são sensacionais, principalmente porque o resto da classe geralmente fica hiper revoltado mas quando vai argumentar a favor da escola, por exemplo, fica sem argumentos. Afinal de contas, escola serve prá quê? Discussões e discussões.
E tem o lance do sexo . Logo no início do livro, há uma cena onde um menino bonitão de quinze anos, o Gato, se apaixona pela Dalva, uma prostituta. Faz que faz e ela acaba indo para a cama com ele. Ele, todo rápido, sem jeitos, e ela o inicia nas artes do amor. Há muitas gírias no livro, tive que explicar, por exemplo, o que era tocar uma bronha. Percebi que essa parte tava incomodando todo mundo e resolvi ler em voz alta.
Tá. agora imaginem ler isso em voz alta para uma turma de moleques e molecas de 12 anos.
Pois é.
Uns simplesmente têm ataques de riso compulsivo, acho que é nervoso, não param de rir.
Outros ficam ruborizados, outros ficam me olhando para ver o que eu vou fazer com tudo isso.
Eu falo que eles já são praticamente adultos ( hahahaha) , que já tá na hora de ver tudo isso com maturidade e vou em frente, sem nem piscar, explicando como na hora do sexo é importante prestar atenção no que o outro tá sentindo e fazendo. Pois é... a gente ganha pouco, MESMO.
E tem o Pedro Bala... Uma das minhas alunas mais velhas falou que faz parte do curso de literatura da escola se apaixonar pelo Pedro Bala, o líder dos capitães. Enfim... que delícia que é quando a gente se apaixona por um personagem de algum livro.
Em Orgulho e Precnceito há alguns choques iniciais.
Primeiro: ninguém trabalha nessa joça? Não, ninguém trabalha. Aliás, uma das vergonhas da família dos Bennet é que eles têm dois parentes que ganham seu sustento com o suor do rosto, um é advogado outro, comerciante. Um horror. Trabalhar é coisa de pobre, gente, eu explico. Nobre que é nobre vive de renda, acabou-se.
Como gasta o tempo aquele que vive de renda? Ué... viajando, caçando, indo a bailes, casando, falando dos outros, tendo filhos, casando os filhos, essas coisas...
E as mulheres? às mulheres restava pouco a não ser ser ter um bom dum dote. Não sendo esse o caso, torcer para ser bem linda, costurar, pintar, dançar, tocar piano e saber conversar da melhor maneira possível e torcer para arrumar um belo dum marido. Pronto. Às mães, cabe o maior empenho para que isso ocorra.
Uma bobagem sem fim? Não.
Porque a Jane Austen salva.
Salva como? Sendo extremamente irônica e mordaz em relação a essa sociedade. (E como é difícil explicar e fazer com que os alunos entendam ironia! )
Escrevendo diálogos sensacionais, e criando personagens que são extraordinariamente verossímeis, reais, interessantes e complexos. E no meio disso tudo, há algumas discussões de fato importantes, sobre casamento, amor, a condição da mulher, dinheiro, fofocagem e maledicência, beleza, orgulho e preconceito.
É impressionante como o livro continua atual.
E aqui vai, finalmente, a revelação do meu preconceito que foi desfeito: muitos meninos adoraram o romance. Se acabaram. Foram os primeiros a terminar de ler. Legal né? Achei o máximo. Bobagem a minha achar que esse negócio de namoros e seduções só interessaria às meninas.
Enfim.... mil coisas para contar.
Estou indo para a roça, eu, essa paulistana urbaníssima que achava que goiabada cascão era aquela goiabada que vinha em lata, que vendia no supermercado, com o Cascão ( da Mônica e do cebolinha) na embalagem.
Volto domingo, querendo muito organizar a minha vida para voltar a escrever com mais regularidade por aqui.
Um beijo a todos,
Lulu.
Para quem chegou agora e se interessou sobre esse negócio de aula de literatura para adolescente, passeiem pelo lulu na escola , acho que é o melhor negócio. Mais beijinhos, e bom feriado a todos.
Legal. É bom pensar essas coisas para, daqui há pouco tempo, indicar leituras proveitosas para minha filhota aqui.
ResponderExcluirLulu,
ResponderExcluiré sempre um prazer chegar em sua casa e ler seus textos. Eu adorei ler este livro. A gente sempre quer um fim legal, mesmo quando se é como eu, uma meio sartreana.
No primeiro ano de graduação de Ciências Biológicas li, este ano, o livro mais flexível do Darwin: A expressão das emoções no homem e nos animais. Uma turma amou, a outra questionou a terceira nem se importou.
Ola lulu,
ResponderExcluirFaz um tempinho que acompanho seu blog, e diante desse texto só tenho uma coisa a dizer...
Queria ter tido uma professora igual a você. :)
Bom dia do Professor!
ResponderExcluirNossa, adorei, Lulu. Tive alguns resultados parecidos dando para os alunos Os sofrimentos do jovem Werther, do Goethe.
ResponderExcluirP.S.: Nunca mais questiono vc, amiga. Nem estou falando isso pq disse q gosto de corrigir trabalhos, mas é exatamente sobre fazer algo repetitivo. Minha chefe me mandou refazer dois diários de classe pq tinha rasuras. É a coisa mais insuportável do mundo! Daqui a pouco corto os pulsos.
Ulisses,
ResponderExcluiré uma delícia ter vc como leitor sim, e é claro que vcc pode questionar sempre, à vontade, ué. Aprendo, aprendemos, e isso que é bacana em ser professor, num é?
um beijo grande, amigo.
Lu.