domingo, 19 de agosto de 2007

legal, mas... tem história?




Na busca por livros bacanas para ler com a garotada um princípio é básico: os livros devem ter enredo, ou seja, deve contar alguma história, onde coisas aconteçam. Muitas coisas, e que de preferência aconteçam rapidamente. Quando resolvi ler A hora da estrela com a oitava série essa foi a maior dificuldade: o narrador demora vinte páginas para entrar na história. Até chegar lá, escreve sobre si próprio, sobre o processo de escrever, sobre o porquê ele tem que escrever, o significado, essas coisas. Ainda por cima, conta como escrever sobre aquela nordestina é uma necessidade porque a nordestina lhe incomoda, como está cansado, que tem dor de dentes, deixou a barba crescer, essas coisas. Eu acho lindo. Os meninos, e as meninas, acharam um saco.
E olhem que A hora da estrela é talvez o romance da Clarice que mais tem enredo, mais tem vínculos com o mundo concreto, social, etc. e por isso mesmo é o melhor.
Causou uma espécie de trauma.
Comecei a ler um outro livro com a classe e nas primeiras três linhas um menino levantou a mão:

- Luuu...
- sim?
- esse tem história?


Conversava com um colega sobre isso, um amigo meu que dá aulas para o colegial e estava enfrentando a mesma dificuldade com o Sagarana, de Guimarães Rosa. A hora e a vez de Augusto Matraga tem enredo, tem um super enredo maravilhoso, mas outros contos ali são dificílimos. Esse meu colega e amigo falava que os alunos em parte têm razão, muitas vezes a narrativa perde-se nos meandros e encantamentos da linguagem e acaba perdendo-se mesmo, literalmente.

Alguns livros constróem-se quase que inteiros em cima desse encanto com a língua, ou com o pensamento e emoções de personagens e suas construções. Oferecer um livro assim a um adolescente equivale a, basicamente, dar um tiro na própria cabeça.

Não é só com a criançada que isso ocorre. Quem tem paciência para longas elocubrações sobre o que vai no interior de alguém? Quem aguenta filmes lentos com enredos minimalistas? Ou filmes que se constróem basicamente em cima de falas filosóficas que parecem não chegar a lugar algum e imagens belas mas díspares entre si?

Poucos, muito poucos.

No entanto, no entanto...

"não conta o final!"

se o que importa é o enredo e se o que nos prende a um bom livro ou mesmo um filme é a pura curiosidade de saber o que vai acontecer, porque a gente relê tantas vezes a mesma história? Por que a gente revê mil versões de Hamlet mesmo já sabendo de antemão quem matou o pai dele e que tudo vai terminar mal? Por que uma mesma história, com os mesmos fatos, contada por um bom contador pode ser maravilhosa e, mal contada, fica chatésima?

Saber o que vai acontecer de antemão talvez tire o encanto de muitas obras de sucesso que andam por aí, mas definitivamente não tira o encanto das grandes obras. Porque o que há de mais belo, mais original e mais emocionante numa obra de arte não é a história contada, mas como ela foi contada. Por isso um resumo não substitui um livro, por isso sou contra adaptações. Transformar experiências em linguagem é o grande lance e a grande dificuldade, a psicanálise sabe bem disso.

De qualquer maneira, é nesse como que reside a arte, é ali que se separam os grandes dos médios. É isso que tento mostrar aos meus alunos: no campo da arte, a forma não pode ser dissociada do conteúdo, por isso traduções são tão difíceis, quase impossíveis, por isso a maior emoção não está no fato de que o mocinho e a mocinha morrem no final devido a uma série de enganos e incompreensões familiares. A maior emoção é como essa morte, um dia, na Inglaterra, foi narrada. Todos sabem o final, o lindo é a narração desse final.


quantas histórias existem ?

Se formos pensar, todas as histórias do mundo são muito parecidas entre si. Amores e desamores, desejos, sexo, morte, encontros e desencontros. Infinitos são os personagens que as vivem, aquilo que sentem sobre o que vivem, infinitas são as maneiras de contá-las. E a cada nova maneira, faz-se uma nova história.

A marca humana, a marca da criação está na maneira de narrar aquilo que foi vivido, sentido, pensado, imaginado, sonhado.
A busca por fatos, por conteúdos, pelo que vai acontecer então é um pedacinho curtição de uma grande obra, o mais volúvel, que se perde com mais facilidade, basta alguém falador ao lado que já tenha visto o filme e... se o filme, ou o livro for só isso - puro enredo - acabou-se o porquê de lê-lo, de ver o filme.

Coisas que acontecem, e que não acontecem ...

cadê a porra da baleia?


Meu marido ama Moby Dick. Fez parte do nosso encontro minha descoberta de obras que eu não conhecia, ou não sabia apreciar: O senhor dos anéis, Star Wars. Ele diz que me fez virar uma nerd, basicamente. De minha parte... sei lá, ele passou a realmente gostar de sushi. Já havia lido todo o senhor dos anéis e o Hobbit, já parara de confundir Star Wars com Star Treck, já sabia que com a força não se brinca, mas ainda não havia lido Moby Dick. O livro foi e é a grande paixão literária dele. Fui ler.
"Call me Ishmael". Começa bem e tudo. E então vêm os capítulos descritivos. O óleo da baleia, a importância do óleo da baleia, o significado do óleo da baleia, a presença do óleo da baleia em todos os aspectos da vida. O que é uma baleia, quais os tipo de baleia que existem. Como se mara uma baleia. A função de cada um. O branco. Páginas e páginas inteiras sobre o significado da cor branca. E a obsessão do Ahab.
Confesso: tudo o que eu pensava era quando a maldita baleia ia, finalmente, aparecer.
Esposa apaixonada que sou, li o livro até o fim. A tal da Moby Dick aparece só no último capítulo, já aviso logo. Umas oitocentas páginas mais tarde. Quis morrer. Não rolou pra mim, achei tudo aquilo um saco. (depois redescobri o livro, ouvindo, num desses audio books, em inglês, e vi que era inclusive engraçado e tal, mas isso foi bem mais tarde)
O problema é que eu fui ao livro atrás da história da caça da baleia, a caça concreta, e esse não é o barato. É um livro sobre uma procura, sobre uma espera, sobre uma busca. A ação, a grande ação, nesse sentido, o encontro em si, é uma pequena parte. É claro que interessa saber se afinal o Ahab encontra ou não, se vence ou não seu monstro branco, mas a procura obsessiva dele é o maior conteúdo do livro, as descrições, as divagações do narrador, a atenção aos detalhes, os grandes personagens ali presos, submetidos à obsessão desse capitão ferido, são a matéria desse romance.

(sobre Moby Dick, fui pesquisar imagens e encontrei isso aqui. vale o desvio)

traiu ou não traiu?



Eu adoro enredo, adoro uma fofoca, tenho fascínio por ações e reações humanas. Ao mesmo tempo, me perco loucamente nos labirintos da minha cabecinha maluca. Meu avô fala que temos macaquinhos no nosso trapézio, aquele ali que fica dentro do cérebro. Os meus fazem a maior bagunça, raramente me deixam em paz - passo um tempão para entender o que é que quero afinal de contas e mesmo assim nunca tenho muita certeza. Fico horas não só divagando sobre o sentido da vida e da existência e do mundo como também sofro com isso. Uma inutilidade completa, e talvez mesmo uma grande perda de tempo. Fico tempos sem ação, vivo e revivo histórias, diálogos, ações, eu não saem da minha cabeça, me perco em mim. E afinal de contas não foi uma idéia fixa que matou o Brás Cubas? Ai de quem culpar na doença. E afinal de contas, já que estamos no Machadão, que importa se a Capitu traiu mesmo ou não o Bentinho? O barato é o que o Bentinho diz sobre isso, e o que ele não diz, dizendo.


se você trabalhasse na lavoura e ficasse bem bem cansada não pirava tanto assim...

Talvez.
Andei melancólica e junto a melancolia vem sempre uma certa paralisia.As ações de fato ajudam e ajudaram. O Lord inclusive deu uma dica bem prática: saia para correr, lulu. Endorfina, ajuda. Corri, fui ao cinema, namorei, vi pessoas, melhorei. Conversei com um grande amigo, daqueles queridos do coração, e ele me falou isso: lulu, vai trabalhar uns dias limpando chão que tudo isso daí passa. Mas a depressão, a tristeza, a melancolia tomam conta também da minha faxineira. Porque as coisas de dentro, que não acontecem a não ser ali bem dentro são tão reais quanto as de fora. E elas acontecem, havendo tempo para se pensar nelas, havendo espaço para senti-las, ou não.

Aqui, meu alter ago de uma mulher trabalhando na lavoura: a estonteante Silvana Mangano, em Arroz Amargo, um belíssimo filme, aliás.


Tá, confesso. Para essa mesma oitava série, ali, logo depois da Clarice, resolvi dar Dostoiévski, Memórias do subsolo. Okei. Pirei.

Em minha defesa digo que o pai de alguém havia falado para o filho que esse era o melhor autor do mundo e o moleque pilhou a classe inteira e ano passado todos falaram que queriam ler Crime e Castigo. Pe-di-ram. Que fique bem claro que dou aulas numa escola particular SP onde a maioria dos pais são intelectuais, artistas, profissionais liberais, etc. Por isso que esse tipo de coisa acontece. Enfim Crime e Castigo é enooorme. A orientadora vetou. Ficamos com Memórias do subsolo.
O livro tem duas partes, a primeira é pura angústia do personagem. Na segunda coisas acontecem. Pulamos para a segunda, quem gostar, depois lê a primeira. A angústia permanece. O cara se acha feio, e ainda por cima nem expressão inteligente tem. O cara se acha superior a tudo e a todos, ao mesmo tempo, se acha tão inferior que não olha nos olhos de ninguém. O cara sai à noite às vezes à procura de alguma experiência na vida. vê uma briga numa taverna, um outro é jogado pela janela. O cara fica querendo participar de uma briga, quer ser jogado pela janela.
- puta looser professora!!!
- meu, mata logo esse cara!!!
- ele merecia ser preso e comido na prisão!!!
Continuei lendo. O narrador tenta arrumar uma briga, mas é ignorado, não consegue nem isso. E pira. Fica dois anos pirando, planejando uma vingança sobre o outro que o ignorou e não se dignou nem a brigar com ele. Os alunos não acreditavam. ( sempre nas aulas iniciais sobre qualquer livro, leio o livro em voz alta com a classe, vamos lendo e conversando, é uma boa dica para quem dá aulas)
- meeeeeuuu!!!! por que alguém vai perder tempo escrevendo sobre um cara assim????
Até que uma menina levantou a mão:
-sabe, esse cara é meio pirado mesmo, mas... às vezes, eu piro muito com umas coisas que não têm nada a ver!! eu fico super encanada, pensando hooras.
Sorri um pouco, bem discretamente, estava salva:
- é... ás vezes eu me sinto também sem vontade de falar com ninguém...
- eu, ano passado, encanei com uma coisa que eu fiz e fiquei o ano inteiro encanado com essa coisa...
- eu já saí à noite procurando briga, por nada...

pronto. O livro tá rolando.
( dá para ler um trecho, aqui)

As histórias de dentro, as histórias de fora, e o mundo que se organiza.

Às vezes, essas coisas, as coisas de dentro, são traduzidas por grandes obras, que tratam não só das nossas vidas e ações mas também desses macaquinhos que vivem ali, em nossos trapézios, e às vezes parecem ter vida própria, dão o maior trabalho e não há lavoura que os acalme.

Não precisamos viver nossas vidas como personagens de Dostoiévski, ou como alguém num filme do Wood Allen, mas também não somos sempre o Bruce Willis que não só é duro de matar como também salva o mundo todos os dias. O bacana é, talvez, ter espaço para os dois, e para quantos mais vierem, e agir e curtir também a poesia do como a vida é feita.

Reconstruir a ordem do mundo e também a nossa, a cada vez, a cada novo perigo de destruição e perda de sentido.

Os livros ajudam - com ação ou sem ela.







aqui, o menininho maluquinho do Ziraldo, que explica tudo o que eu quis dizer, de maneira bem mais suscinta, não encontrei uma imagem maior... fica assim mesmo, para a gente lembrar. Reparem nos macaquinhos!!.

4 comentários:

  1. Lu,
    Interessante o que vocÊ falou sobre Moby Dick. Li ainda menino. A força que o livro teve sobre mim foi imensa. Das melhores coisas que minhas memórias guardaram, os momentos que passei lendo. Nunca tinha reparado que a baleia só aparecia no fim.
    BEijo

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  2. “Lulu na escola” é a minha parte preferida do seu blog (pode ser q eu seja passional, mas fazer o q). Adorei a postagem de hoje, entretanto quero perguntar uma coisa: por que diabos você conta para a orientadora o que você vai fazer? Eu só conto para a orientadora, para a diretora ou para quem quer que seja que pode me vetar depois que eu já fiz a bagunça. Normalmente os alunos adoram.

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  3. "Ir pra roça" apenas deixa os macaquinhos mais silenciosos e os livros salvam, muito. =)

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  4. (vou falar bem baixinho)

    Um de meus maiores amigos na blogosfera ama de paixão Moby Dick. Mas não rolou para mim também. E olha que costumo gostar de tudo que os outros acham chato e enrolado.

    Paciência.

    Já o Bartleby é outríssima história.

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