sábado, 15 de setembro de 2007

"professora, puta cara loser, esse Dostoiévski ."




"Puta cara loser, esse Dostoiévski, professora!"- falou um aluno. "Sabe... eu acho que eu me identifiquei um pouco com ele... - respondeu outro aluno."

















Esse post é continuação dos posts Três tigres tristes

Professora, queremos livros felizes.



Sobre o narrador de Memórias do subsolo, do Dostoiévski, na sala de aula, oitava série:


-Professora, eu ODEIO esse cara, odeio, odeio, odeio. Ele é o maior loser de todos os tempos!

( eu comecei a rir, achei engraçado, e o aluno tem razão: o herói do Memórias do Subsolo é mesmo o maior loser de todos os tempos:

"Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. (...) Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (...)
Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais."(p.15)

Desempregado aos quarenta anos, por vinte foi um funcionário "maldoso, grosseiro, e encontrava prazer nisso".

"Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto." (p.17)

Aos quarenta anos, viveu sua vida toda. " Viver além dos quarenta é vulgar, imoral!" Ainda por cima é feio, e nem ao menos tem o consolo da expressão inteligente.

Na primeira parte do livro, dedica-se a falar de si:

"Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por que não consegui tornar-me sequer um inseto, Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno." (p. 19)



O cara não consegue nem ser um inseto decente. Looooooooooseeeeerrrrrrr. Doeeennnnteeeeee.

O diálogo na sala de aula continuava:

- Puta cara chato, meu! Sério, professora, sabe do que eu acho que esse cara precisava? Precisava ser preso e enrabado por três negões, aí ele ia deixar de frescura.

( risos, são bons, esses meus alunos)

- Sabe quem é esse cara, professora? Você já viu aquele programa, linha direta?
- Já.
- Então, ele é um desses caras que aparecem no linha direta.
- Será? O quê vocês acham, gente?
- Eu acho que não... - falou uma menina, bem tímida mas convicta - porque... sabe? O que é legal nesse cara é que ele tem consciência de como ele é ridículo e patético, ele sabe disso. Ele tem raiva do mundo mas acho que tem raiva principalmente de si. E... sabe? eu acho que eu até me identifiquei em algumas partes do livro... não assim com essa raiva toda que ele tem do mundo, de todo mundo, tal... mas da vergonha que ele sente de si próprio às vezes... da vontade que ele tem de não falar com ninguém e ser grosseiro com todo mundo... De como às vezes ele é superior a todos, e às vezes se sente super inferior.


- Sabe o que eu gostei no livro? - um outro aluno - como ele sempre pensa que deve fazer uma coisa e nunca faz aquilo que pensa que deve fazer. Ele está lá num lugar e pensa: eu preciso dar um soco nesse cara, ou : eu preciso ir embora... mas fica lá, andando de um lado para o outro e não faz nada daquilo que gostaria de fazer, ou que acha que tem que fazer. Eu achei isso muito legal.

- Eu acho que esse livro me ajudou a entender melhor as pessoas...
- Por quê?
- Ah... sei lá... o cara tem coragem de falar um monte de coisa que todo mundo sente um pouquinho mas não tem coragem de confessar, ele vai lá e confessa, sabe?

Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio, e, em cada homem honesto, acumula-se um número bastante considerável de coisas no gênero. E acontece até o seguinte: quanto mais honesto é o homem, mais coisas assim ele possui (…)

Agora, quero justamente verificar: é possível ser absolutamente franco, pelo menos consigo mesmo, e não temer a verdade integral?
(p. 52)


Uma menina vira para o outro que disse odiar o cara com todas as forças:
- Você nunca faz uma coisa da qual se arrependeu depois? Ou deixou de fazer por falta de coragem e depois ficou pensando nisso durante dias e dias, e isso virou uma coisa enorme na sua cabeça? Você nunca quis fazer algo e acabou fazendo justamente o contrário? Eu fiquei com um pouco de pena do cara, sabe? mas gostei dele, de uma certa maneira, sei lá.

- Eu não gostando do livro porque dá aflição e angústia.
- Eu acho que o cara devia tomar coragem, se matar e deixar a gente em paz.
- Por que alguém vai escrever um livro sobre um cara desses?

Isso que é o mais lindo, gente. Que alguém vá escrever um livro sobre um cara desses. Que alguém vá falar que a razão, o bom senso, a racionalidade não são suficientes para explicar o que é o ser humano. Que o cara, e a gente, tem impulsos auto-destrutivos que todo mundo tem... Que nem sempre a gente age com racionalidade, quem nem sempre dá, e vale a pena, ser um winer na vida. Que tudo isso aliás é meio ridículo, que há o subsolo do humano, e que esse não pode ser negado. Porque todo mundo aqui sabe que a gente tem às vezes prazeres e desejos perversos, ou teve - na infância, sei lá... todo mundo aqui já fez alguma vez alguma coisa muito nada a ver, perigosa ou auto-destrutiva prá caramba, só para flertar com o perigo, para testar limites, sei lá. ... Que todo mundo é meio loser mesmo e ainda bem, porque essa figura do cara que sempre consegue tudo aquilo que quer, que sempre faz tudo aquilo que acha que deve fazer, que tá sempre feliz, realizado e se dando bem com todo mundo... Vamos combinar, gente... é um saco. E é falso também... Sabem, esse cara leva ao máximo um lado que todo o mundo tem, vamos chamar de lado loser, para vocês verem o ridículo dessa expressão. Ainda bem que alguém escreveu um romance sobre ele, porque o ser humano não tem controle absoluto sobre si próprio, tem o inconsciente, tem um prazer que a gente sente na dor, tem um monte de coisa... Essa obrigação de ser feliz, de se dar bem em tudo, de conseguir as coisas, é na verdade não só ridícula como muito dura também.
E o pior: ele é um cara que tem a consciência hipertrofiada. Pensou demais, observou demais, refletiu demais. A resposta possível que ele dá para tudo isso, para o ridículo das pessoas que observou, para a hipocrisia do mundo, os bajuladores, etc. é a inércia. Pois para ele não adianta fazer alguma coisa, porque nada do que ele fizer vai mudar ou alterar o estado do mundo e das coisas. Mas isso não impede que ele sinta raiva, muita raiva. O discurso dele é inteiro raivoso, e é bacana um discurso raivoso, o mundo precisa também disso.

Sabem, quando vocês falaram aquele negócio de livros tristes eu fui estudar. E li um livro que chama A teoria do Romance, do Georg Lukács. E uma das coisas que ele diz lá é que o romance moderno é mesmo necessariamente meio triste, ou é triste ou é entretenimento.
Porque na modernidade o mundo não está dado, ele não é harmonioso, não tem um sentido a priori, uma essência que faz com que tudo tenha seu lugar e a vida faça sentido. É a gente que tem que construir o nosso mundo, sabe? Ir juntando as pecinhas partidas, criando nossos sentidos... Para o Lukács, o romance moderno trata justamente dessa construção: o herói do romance moderno tem que construir a si mesmo e ao mundo, criar um sentido para si e para as coisas do mundo. Esse é o grande tema.
O problema é que, para esse autor, essa construção necessariamente está fadada ao fracasso. Porque se o herói se adapta e vence no mundo ele perde algo de si mesmo, da sua verdade. Ele se torna, sei lá, ou um pouco hipócrita, um pouco cínico, sei lá... perde a sua integridade. Isso acontece por exemplo no romance Ilusões Perdidas, do Balzac, que mais tarde vocês deveriam ler. Por outro lado, se o herói mantém sua integridade, ele não cabe no mundo. Aí vira por exemplo um inseto, coitado, como na Metamorfose. Ou mesmo no Apanhador no campo de centeio. O Holden acha todo mundo meio ridículo, meio patético, tem uma consciência e o Holden só se ferra. Tem um amigo meu que inclusive acha que esse romance é reacionário, porque no fundo diz que se você tem essa consciência hipertrofiada e quer ser fiel a si mesmo e aos seus valores, você vai acabar tendo um troço, sendo expulso de todas as escolas, e terminando numa clínica de repouso.


Eu não sei, gente, se tem uma saída. Eu sei que é verdade que muita gente abdica de si mesmo e se aprisiona ao máximo para poder inserir-se no mundo, não virar um loser, ganhar muito dinheiro, sei lá. Tem muita gente muito infeliz por aí, gente demais. E é difícil mesmo. Porque por outro lado ninguém quer virar uma barata ou um personagem do Dostoiévski que nem barata conseguiu virar. Mas é bacana a literatura mostrar que o mundo é um pouco isso aí mesmo. Que é uma batalha a gente ser fiel a nós mesmos, e para isso a gente tem que lembrar o tempo inteiro que essa construção do mundo e de nós mesmos nos dá uma coisa muito muito preciosa e bacana: liberdade. Ninguém está predestinado a nada, ninguém tem um lugar fixo, cada um pode ser livre para viver seus desejos, construir sua vida, lutar pelos seus sonhos, lutar pela construção de um mundo melhor - mesmo que isso signifique ficar um pouco `a margem, sei lá. A resposta para esses livros não precisa ser uma tristeza e uma depressão, pode ser pelo contrário: ação, e mesmo, talvez, um certo alívio, porque não é humano vencer, se dar bem e ser racional o tempo inteiro, e esses livros mostram que nem é isso que interessa.



Essa foi a aula de ontem. Quis escrevê-la, sem nenhuma obrigação de amparo teórico nem nada, porque muita gente acompanhou e pensou sobre a questão dos livros tristes na literatura. Essa foi a minha resposta, e sabem? eu acho que , ao final, deu certo e valeu a pena a insanidade de ler Dostoiévski com a oitava. Cerca de 70 por cento da classe gostou, e esse tipo de conversa, esse tipo de reflexão são bem importantes, nunca a classe esteve tão em silêncio e concentrada como ontem. Enfim, eu tenho muitos amigos fiéis a si mesmos, que conseguiram, nesse mundo louco e desigual, encontrar caminhos verdadeiros e que lutam sempre para viverem de acordo com suas verdades e desejos. É possível, a medida que fico mais velha, me sinto cada vez mais livre, e traço minha vida para ser cada vez mais verdadeira, e feliz. Acho que dá sim.


16 comentários:

  1. Antes de ontem e ontem já passei por aqui, e gostei do teu blog...
    gosto da maneira que escreves Lulu...
    e aproveito e desejo-te os Parabéns ^^
    Que sejas muito feliz e que possas fazer muitos mais assima desses ^^

    beijinho***
    tudo de bom para ti menina
    zaaaaaaaaaaau


    --- omega ---
    (W)

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  2. Meu, gostando ou não gostando uma coisa ficou nítida: os alunos ficaram instigados!

    Coisa rara hoje em dia, em que os alunos querem mais instrução do que educação. Parabéns pela atitude!

    abração,

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  3. Post genial e inspirador. Muita coisa boa para se pensar.

    Aproveito e deixo um Feliz Aniversário!

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  4. Lindo post. Também deixo-lhe Bom aniversário!

    Bjs

    Marta

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  5. Também acho que dá... E olha que é mais fácil do que conseguir esse resultado que você teve com a sala. Meus parabéns, Lulu, só essas falas dos alunos já são a maior prova de que o livro rolou. Mandou bem, amiga.

    P.S.: Ah... lembrei de mais um livro feliz, se vc ainda se interessar: o Flush, memórias de um cão, da Virginia Woolf. Usei uns anos atrás para falar dos costumes do final do XIX, início do XX e foi um sucesso absurdo entre os alunos... Talvez interesse.

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  6. Ops... até esqueci... desculpe-me. Parabéns, Lulu. Muitos beijos.

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  7. Sadlover,
    muito obrigada!Volte sempre,
    beijinhos,
    Lu.

    Catatau,
    é, acho que o papel principal é instigar, mexer um pouco com a normalidade dos alunos! Obrigada, viu?
    Um beijo gande,
    Lu.,

    Felipe,
    é sempr eum ahonra receber um elogio seu. Com toda admiração,
    Lu.

    Marta,
    Obrigada a vc, por todo carinho e espaço!
    Um beijo grande,
    Lu.

    Ulisses,
    meu amigo, professor também! Obrigada. Vale apensa, né e sim, é possível sim.
    Um beijo grande,
    obrigada,
    Lu.

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  8. Oi Lu,

    Que lindo ler sobre o que você, professora, proporciona a eles, alunos e vice-versa.

    Beijocas,

    Mari.

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  9. Seus alunos tem muita sorte não? Quantas professoras instigam debates assim hoje em dia?

    Agora, inegavel é que todos nós vez ou outra frequentamos o sub-solo, mas cade a coragem pra escrever memórias destas experiencias?

    Beijos
    miranda

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  10. Lulu, parabéns pelo teu blog, muito bom! Concordo com Catatau: pelo menos, a leitura instigou alguma coisa nos alunos. Mil vezes uma rejeição, por exemplo, do que uma apatia ou uma indiferença. Da minha parte, já que sou também professor, um aluno já me disse, de forma retumbante: "velho, esse Marx é fissurado no capital". Fiquei ligado!

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  11. Lulu, deixei outro comentário sobre literatura em meu blog Vc me inspirou!

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  12. Lulu, e uma das coisas mais interessantes que acho em Dostoiévski; apesar de todo esse pessimismo, esse niilismo, bem no fundo ele apresenta uma veia de esperança, que fica bem mais forte a partir de Crime e Castigo, e termina com o menino Kolia dizendo em Os Irmaos Karamazov: "E sempre assim, a vida inteira, de mãos dadas! Viva Karamazov!"

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  13. Parabéns pelo aniversário, eu não pude ver antes!!!! Adorei a comemoração e quero saber sobre a comida do sábado.

    - * -

    Lulu, a experiência com todos os livros dá certo quando temos um diálogo franco como o que você teve / tem em sala. Ouvir o aluno é importante. Não impor opinião. Deixá-lo falar.
    E se a gente seduz a sala para a leitura, ela acontece bem: dos tristes e dos felizes. Afinal, somos assim.
    Eu também li coisas tristes nesta semana na faculdade. E é muito bom ver o engajamento dos estudantes na discussão.

    Mas, como já falei, sempre preparo um pouco antes a turma, a sedução da palavra ... no início, livros felizes. Depois tudo o mais.

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  14. Estou no terceiro colegial e devo dizer: foi o melhor livro que já li em toda a minha curta vida. Bando de losers esses teus alunos :D ahahaha brincadeira =)

    Obrigada por dar esse livro pros alunos, e fico feliz que eles tenham discutido tanto, me mostra que nao é em todos os lugares que as pessoas parecem macacos... Sensacional tambem seu entrosamento com os alunos, eu se fosse professora ia bater em quem dissesse "ele é um loser".

    Deve ser muito bom ter aulas contigo!

    Marina.

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  15. Achei que meu trabalho estava fadado ao fracasso. Bom saber que há professoras de literatura que ainda conseguem ensinar o real sentido da liberdade e quão cara ela pode custar.

    Caí nesse blog porque estava procurando indicações de livros para trabalhar com meus alunos e percebi o quanto fui medíocre ao subjulgar a capacidade de compreensão que eles teriam da literatura e do mundo. Quis fugir dos livros que foram mais importantes na minha formação, como Memórias do Subsolo e estava pensando em adotar livros divertidos ou de suspense,achando que isso seria o máximo que eles leriam.

    Adorei o Lulu na escola porque me fez repensar numa série de coisas. Parabéns pelo blog e obrigada por contar aqui suas experiências em sala de aula.

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