O fato: Para começar, eu estava
aqui.
deu na uol ( link acima) :
"O índice de congestionamento na noite desta sexta-feira bateu o recorde do ano. Na véspera de feriado prolongado da Revolução Constitucionalista, comemorada na próxima segunda-feira (9), ele atingiu 201 km, segundo a CET. A média das 19h das sextas-feiras de junho deste ano é de 164 km.
(...)
Segundo os registros da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), o índice de 201 km de lentidão às 19h é o segundo maior da história para o horário. O maior registrado até agora para o horário das 19h foi anotado no dia 28 de junho de 1996, quando chuvas torrenciais caíram sobre a cidade de São Paulo no início das férias escolares daquele ano.
(...)
A NovaDutra registra três pontos de congestionamento na rodovia Presidente Dutra, na saída de São Paulo. São três quilômetros de congestionamento entre os kms 230 ao 227 (ainda na cidade de São Paulo). O tráfego também é complicado do km 222 ao 219, em Guarulhos, e outros três quilômetros de lentidão do km 157 ao km 154, em São José dos Campos.
Estava voltando de Guarulhos, via Nova Dutra, saí de Guarulhos às quatro da tarde, cheguei em casa sete da noite. Sim, três horas de trânsito. De desligar o motor do carro. Olhar em volta. Comprar, e beber, a suspeitíssima água vendida pelos camelôs da estrada. Ouvir todas as estações de rádio. Vontade de fazer xixi, fome. Ainda bem, eu me minha sogra, que nos damos bem e não ficamos histéricas nem estressadas. Ouvi todas as histórias de infância dela.

Tempo suficiente para desenvolver teorias. Há a teoria para as fases do luto. Dizem que há quatro fases para a vivência do luto. Primeiro, a do choque. A pessoa se sente atordoada, ou adormecida, sem entender bem ou conseguir aceitar o que aconteceu. Depois, a da negação. A pessoa fica em estado de incredulidade, e começa a se perguntar porquê. Por que isso aconteceu? Por que eu não evitei? Procura manter a pessoa amada consigo, negando a sua partida. Depois, há o sofrimento, a desorganização. A perda foi introjetada, não pode ser mais negada, e resta lidar com a dor e com tudo aquilo que a perda acarreta. Por fim, vem a fase da recuperação, onde pode-se começar a olhar para o futuro, ao invés de ficar concentrando-se no passado, há um ajuste à realidade da perda e pode-se até começar a estabeler novos relacionamentos.
Pois bem, entre a primeira marcha e o ponto morto, comecei a inventar a teoria das fases do engarrafamento.
A teoria: Primeiro, a fase do choque. No começo de tudo, prestem atenção, eram quatro da tarde. Quatro da tarde. A incredulidade era absoluta. Como assim? Um trânsito de desligar o carro? De estar totalmente envolta por caminhões e carros, respirando fumaça, sem poder ir nem vir, presa, ali? O atordoamento é total, até que vc se pega comemorando um avanço de meio metro. Você repara no Meriva ao seu lado, presta atenção no Peugeot, comenta que o cara da frente já tirou a camisa e saiu duas vezes do carro ( os homens sempre ficam nervosos, não é mesmo? ). Ele está acompanhado, será uma namorada? será que ela está nervosa? eles se amam? ( falta absoluta do que fazer dá nisso) . O principal: você não acredita que está ali.
Vem então, a fase da negação.
Sim, é difícil acreditar que você caiu nessa roubada. Paulistana experiente, trinta e um anos de estrada por essa vida, vai cair na Via Dutra, rumo à Marginal Tietê, no final da tarde, em dia de suspensão de rodízio, às vésperas do feriado? Como assim? E como pode haver um congestionamento tão grande? Algo deve ter acontecido.
Um moço passa, vendendo pipocas doces, aquelas de saquinho, tipo isopor cor de rosa:
"Moço, o Sr. sabe o que aconteceu? " "Nada não, moça. Sexta feira à tarde, é assim mesmo." "Ah bom..."
Não é possível... Será?
Ao longe, o
skyline esfumaçado e cinza de sua cidade, outrora tão próxima. Ela está ali. Como sempre esteve. Distante, à sua espera. Inalcançável. Imóvel.
Resta se haver com a triste realidade.
Vem então a fase da aceitação da tal da triste realidade. Estamos aqui, não há jeito , não há como escapar, não há saída nem rota alternativa de fuga. E então você se lembra que nesses trinta e um anos de estrada virou uma mulher descolada, bem resolvida, fez ioga, análise e tai chi chuan...
Não.
Você não vai sucumbir. O carro tem rádio, tem um CD do David Bowie, vc está acompanhada, alguma hora os carros hão de se mover novamente. Você decide relaxar, aceitar esse destino infeliz, se entregar e tal, como uma pessoa da era de aquário e tal. Quase lembra do conselho da ministra, "relaxa ..." , mas aí já é demais e, afinal, era a sogra que estava ao lado.
A realidade:Então, você percebe que, por mais que ame o Bowie, queira casar com ele, abandonar família, gata e tudo o mais por esse cara estranho de um olho de cada cor, não é possível ouvir:
"This is ground control to Major Tom..." mais que dez vezes seguidas. E começa a ficar aflita. Liga na rádio e descobre um programa chamado Chupim, dedicado a dar trotes nos ouvintes. Descobre uma sinfonia de sei lá o quê na Cultura. Descobre uma música nova do Djavan, mais incompreensível do que nunca. E escuta que "o amor é o calor, que aquece, a ( pausa) alma". E vem a fase da revolta.
Foda-se a respiração da Yoga, fodam-se os anos de análise. Você começa a xingar, reclamar do trânsito, da cidade, do país, da prefeitura, do governo, fora FMI, essas coisas. Sim, o descotrole é absoluto. Está calor, xinga a falta de ar condicionado no carro, xinga os preços dos carros com ar condicionado, sente a poluição, começa a passar mal. Vêm as palpitações, um certo enjôo... e se eu morrer aqui nessa joça?
E no meio desse momento definitivo, pleno de angústia, você se lembra. Dele.
Daquele conto, um dos seus contos preferidos, aquele conto que você ama e lê para seus alunos da oitava série como quem dá um presente. Aquele conto perfeito, que diz da vida, do mundo, da nossa sociedade e das relações do nosso dia a dia. Sim, em meio ao pior congestionamento de sua vida, a lulu lembrou da
Auto-estrada do sul, do Cortázar.
E então vem a fase da loucura, total e desenfreada.
A ficção? Para aqueles que não conhecem, trata-se do primeiro conto do livro
De todos os fogos, o fogo, um dos maiores livros de contos de todos os tempos
. O conto está inteiro, em espanhol,
aqui.
É final de um feriado, e nos feriados, todos os parisienses saem de Paris. Domingo à tarde, um calor insuportável. O sentido contrário da auto-estrada fora fechado, todos os carros estão indo na mesma direção. Há cerca de doze faixas de carros, abertas exclusivamente para aqueles que voltam de suas casas depois do feriado. E há o trânsito. Um trânsito imenso, um trânsito absoluto.
Claro, ninguém no conto sabe a causa do congestionamento. A alienação é absoluta, assim como a impotência.Todos estão ali, avançando cinqüenta metros em algumas horas. A cidade de Paris ao longe, carros parados por todos os lados. Dos carros, começam a vislumbrar-se as personagens.
As personagens não são apresentadas primeiramente pelos seus nomes, mas sim pelos seus carros. Os carros vão se tornando familiares, assim como as profissões e a aparência das pessoas que os ocupam. A referência de cada um é o modelo do seu carro. Além disso, alguma atenção é dada também às relações que se estabelecem dentro dos carros. Alguns estão sozinhos, outros viajam com seus filhos, há o casal de idosos, os jovens.
O primeiro parágrafo do conto já apresenta toda a situação, em um único período que corre como uma câmera em
travelling, sem cortes, sem pontos finais, único movimento possível naquela situação de absoluta paralisia:
Al principio la muchacha del Dauphine había insistido en llevar la cuenta del tiempo, aunque al ingeniero del Peugeot 404 le daba ya lo mismo. Cualquiera podía mirar su reloj pero era como si ese tiempo atado a la muñeca derecha o el bip bip de la radio midieran otra cosa, fuera el tiempo de los que no han hecho la estupidez de querer regresar a París por la autopista del sur un domingo de tarde y, apenas salidos de Fontainebleau, han tenido que ponerse al paso, detenerse, seis filas a cada lado (ya se sabe que los domingos la autopista está íntegramente reservada a los que regresan a la capital), poner en marcha el motor, avanzar tres metros; detenerse, charlar con las dos monjas del 2HP a la derecha, con la muchacha del Dauphine a la izquierda, mirar por el retrovisor al hombre pálido que conduce un Caravelle, envidiar irónicamente la felicidad avícola del matrimonio del Peugeot 203 (detrás del Dauphine de la muchacha) que juega con su niñita y hace bromas y come queso, o sufrir de a ratos los desbordes exasperados de los dos jovencitos del Simca que precede al Peugeot 404, y hasta bajarse en los altos y explorar sin alejarse mucho (porque nunca se sabe en qué momento los autos de más adelante reanudarán la marcha y habrá que correr para que los de atrás no inicien la guerra de las bocinas y los insultos), y así llegar a la altura de un Taunus delante del Dauphine de la muchacha que mira a cada momento la hora, y cambiar unas frases descorazonadas o burlonas con los dos hombres que viajan con el niño rubio cuya inmensa diversión en esas precisas circunstancias consiste en hacer correr libremente su autito de juguete sobre los asientos y el reborde posterior del Taunus, o atreverse y avanzar todavía un poco más, puesto que no parece que los autos de adelante vayan a reanudar la marcha, y contemplar con alguna lástima al matrimonio de ancianos en el ID Citroën que parece una gigantesca bañadera violeta donde sobrenadan los dos viejitos, él descansando los antebrazos en el volante con un aire de paciente fatiga, ella mordisqueando una manzana con más aplicación que ganas.
O tempo do congestionamento não é o tempo do relógio. O tempo do relógio é aquele das pessoas que seguem. Que podem calcular os quilômetros rodados por hora. Que se movimentam. O tempo ali é outro, é um tempo parado, inerte, onde o bip bip do relógio perde o sentido de passagem e ganha uma nova significação: a marcação da espera, da repetição, do mesmo.
Em meio ao mesmo, resta a comunicação. Resta olhar e investigar para o quê ocorre dentro dos carros, que carregam consigo microcosmos de vidas e histórias, sobre as quais pode-se especular, prestando atenção, na falta do que fazer, aos detalhes (e quantos microcosmos não exitem nos lugares mais bestas, como mesas de computador, por exemplo? ) .
O escritor, Cortázar, leva essa situação de engarrafamento ao extremo. Anoitece e os carros permanecem parados. Amanhace, e o trânsito não arrefeceu. O cara é corajoso.
Mal se avançou. O congestionamento parece infinito. Dura. Dias. Noites. Dias. Noites. Nenhuma notícia no rádio. Nenhuma casa por perto. Nenhum habitante local a quem pedir socorro. Estão no meio da estrada. Em meio a um lugar de passagem rápida, sem saída, inertes, presos. Sem cúmplices, explicações ou ajudantes. A solidão é absoluta.
( sim, juro. Eu comecei a lembrar de tudo isso enquanto, depois de uma hora e meia, finalmente vencia os poucos quilômetros da Dutra e entrava na Marginal, parada.)
A situação está dada, aos personagens, resta relacionar-se, unir-se. Formam-se grupos. A perspectiva da narrativa limita-se à perspectiva do engenheiro do Peugeot 404 e seu grupo Um campo limitado, observa-se cerca de quatro carros na horizontal e quatro carros na vertical. Conforme o lento avançar dos carros, a moça do Dauphine pode estar ao lado, ou o casal do 203 com sua filha. O solitário homem do Caravelle às vezes perde-se de vista, mas logo volta ao horizonte.
Formam-se grupos. O mesmo acontece com outros agrupamentos de carro. Não se ousa ir muito longe, pois sempre há a esperança, suspensa como um fio que paira sobre todos, que o trânsito magicamente faça juz ao seu nome e volte a andar. Nesses raros momentos, aquele que estiver longe de seu carro é duramente repreendido por um coro de buzinas. Ninguém ousa afastar-se.
Levantam-se os víveres, a quantidade de líquidos. Há o risco de desitradação. Chocolates, balas, algumas frutas. Logo se estabelce um mercado negro. Há aqueles que escondem suas comidas, e são descobertos. Formam-se prioridades, os idosos e as crianças devem ser sempre os primeiros a comer. Esfria. Adoece-se.
Um carro mais confortável serve de enfermaria. A moça do Dauphine chora discretamente sobre o volante. O engenheiro aproxima-se.
São feitas negociações, o caráter de cada um se revela nessa situação limite, de confinamento, em meio a uma auto-estrada, de doze pistas, feita sob medida para o movimento e a velocidade. As pessoas se aproximam. Transam. Falecem.
Uma das situações mais brilhantes da literatura já criadas por um ficcionista.
Na escola: Uma vez, na classe, lendo esse conto (oitava série), houve uma polêmica.
Um aluno falou: Todos nós estamos nessa auto-estrada congestionada! Somos nós, confinados ao nosso espaço, às poucas pessoas que nos rodeiam, com quem temos que conviver e nos relacionar. A auto-estrada é a vida.
( e como são bacanas essas leituras livres que os meninos fazem, sem a obrigações da erudição, da prova, etc, que nós, adultos sérios e acadêmicos, temos) .
E uma menina discordou, com veemência:
Não! A vida é a auto-estrada livre, com todos os carros correndo aos seus destinos, sem olhar um instante para as vidas que correm ao lado, rumo às suas casas, aos seus objetivos, aos seus projetos individuais. Ali dá-se uma quebra no correr dessa vida, e por serem obrigados a ficar parados, há a obrigação do relacionamento, do olhar para o outro, da solidariedade, que não ocorreria na vida normal.
A recuperação? O relógio da marginal apontava: sete da noite. Estávamos ali há três horas. Eu, na direção, procurava a melhor pista ( e sempre errava as minhas apostas, claro. A pista do lado sempre avançava mais rápido do que aquela que eu escolhera). Finalmente, a entrada para o Pacaembu. Andávamos. Estava na última fase. Havia entrado na cidade. Podia fazer planos. "Quando chegar, vou fazer xixi, aí vou abrir uma cerveja, aí vou comer alguma coisa, aí vou escrever um post sobre tudo isso, que pelo menos essa porra tem que render um post... aí vou ligar prá fulano, vou tomar um banho... "
Vislumbrava meu futuro. Perdera de vista meus companheiros de trânsito. Podia até pensar em novas viagens, bastava que planejasse melhor o tempo da volta. Engatei na terceira marcha e foi quase uma felicidade.
Havia os faróis da cidade, o trânsito da cidade, mas estava em lugar conhecido. Rumava, aos maravilhosos oitenta quilômetros por hora, para frente. Estava dentro do tempo, estava voltando.
Em casa, cerveja na mão, leio a auto-estrada do sul.
Em frente, sempre para frente. e assim termina o conto:
Y en la antena de la radio flotaba locamente la bandera con la cruz roja, y se corría a ochenta kilómetros por hora hacia las luces que crecían poco a poco, sin que ya se supiera bien por qué tanto apuro, por qué esa carrera en la noche entre autos desconocidos donde nadie sabía nada de los otros, donde todo el mundo miraba fijamente hacia adelante, exclusivamente hacia adelante.Recuperação? ...

***ps. esse post termina com uma homenagem ao mestre Alexandre Inagaki, que tem uma brilhante análise do conto, chamada: " Só o mistério nos faz viver. Os mistérios da rotina: uma análise do conto " A Auto-Estrada do Sul" " que pode ser lida aqui.
Imagens: René Magritte.
Lulu ( ou devo chamá-la de Alex ou de Sérgio?).
eu fico sempre super-intrigado com homens que se fazem passar por mulheres assinando blogs como tais. Pq isso se dá? Freud explica?.... lendo seus posts com atenção, eu percebi que vc não pode ser mulher, derrapa justamente nos pontos cruciais do engôdo. Não quero supor que vc seja portuguesa (as mulheres portuguesas na net usam pseudônimos em INGLÊS!!! – viva a língua de Camões!!! - e jamais da vida que poriam um só foto delas num blog, afinal, a famìlia portuguesa ainda continua medieval...) e nem tampouco dessas mulheres complexadas com o aspecto físico delas. Só sobra mesmo o fato de vc ser HOMEM. Depois que vi que vc tem outro blog no qual usa um ou dois nomes masculinos, aí eu cheguei à conclusão que vc nem é mulher e nem portuguesa! (risos)
Mas...explica: pq um homem quer se passar como uma mulher assinando um blog como Lulu ???
29 de Julho de 2007 06:49