Meu discurso de paraninfa ( o primeiro parágrafo é blablabla, o resto tá bacana) :
São Paulo, 15 de dezembro,
Crianças,
Pais, famílias, queridos colegas educadores,
É cheia de honra e nervosismo que estou aqui, hoje. Obrigada. Eu, como vocês sabem, estudei aqui no equipe, me formei aqui, na oitava série e no terceiro colegial. Fui educada aqui, pelas mesmas mãos e pelo mesmo espírito que agora educa vocês. Então, estar aqui, agora, sendo homenageada pelos meus alunos, é algo muito forte. Uma espécie de ciclo, e de continuidade porque essa formação, que essa escola me deu, foi o que me fez querer ser educadora. Vocês sabem, um de vocês escreveu isso de um jeito bonito um dia: para mim, ser educadora é um jeito de ajudar o mundo.
Eu gosto de saber que a gente leu, sentiu e pensou muito, juntos, sobre grandes obras da literatura. Lemos sobre um adolescente cujo pai fôra assassinado e cuja mãe casara-se com o tio. Esse menino, príncipe da Dinamarca, convive com os fantasmas de sua família e com as desrazões de si próprio e do mundo. Incapaz de abrir-se para o amor de Ofélia, preso entre a necessidade de vingança e uma vontade de justiça, cheio de urgência de crescer e tomar logo seu lugar no mundo, briga com a questão que ficou tão famosa: ser ou não ser.
Crianças: sejam.
Optem sempre por ser. Com quantas faces vocês tiverem. Tortos, pela metade, na busca. Tenham sempre, coragem de ser. Porque mesmo se não tivermos nada, mesmo se não formos nada, a parte disso, temos em nós todos os sonhos do mundo. Sejam e sonhem, sempre. Uma vez o Silvio, que foi meu orientador educacional aqui no equipe, disse que os adultos mais felizes são aqueles que foram fiéis aos seus sonhos adolescentes. Não se percam dos seus sonhos. Não fujam para o subsolo.
Lemos sobre as mulheres de uma cidade que, cansadas de perderem seus homens para a guerra, fizeram uma greve de sexo. E então, sem suas mulheres, os homens perceberam que mais que fazer guerra, o bom mesmo na vida era fazer amor. E amar, e viver em paz, na paz.
Lemos também sobre um cara cujo sonho era ficar num campo de centeio, que ficasse ao lado de um precipício, vendo crianças brincar. A função dele, no mundo, seria apanhar as crianças desatentas, que, correndo demais ou distraídas, corriam o risco de cair no abismo. Esse cara tinha dezessete anos, perdera seu irmão mais novo, fora expulso de três escolas, crescera 17 centímetros num ano, e queria ser só isso: um apanhador no campo de centeio.
Lemos sobre outro,que certa manhã acordou de sonhos intranquilos e encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.
E à medida que líamos, conversávamos. E a gente conversou que às vezes o mundo nos transforma em insetos mesmo. Nos atropela. Quer que a gente se molde, quer nos obrigar a esquecer nossos sonhos, porque parece que não dá, e a gente entra na roda viva, e um dia acorda em forma de barata. Cuidado, crianças. Ser, é também resistir a essa metamorfose. Ser é resistir. Porque o mundo aí fora é duro, uma vida viva é uma vida atenta, fiel a si mesma e aos seus valores. E para isso é necessário muita força e integridade, e não dá pra ter preguiça.
E não é possível ser, sem que se olhe para o outro. Um olhar de cuidado. Se tem uma coisa que o Equipe ensina é olhar para o mundo com olhos atentos e inquietos, incomodados e ativos. Os outros, o mundo, nos fazem, e dão até sentidos para a nossa existência. Que vocês sejam, e sejam conduzidos por padrões éticos, humanos, atentos ao outro.
Mas como é difícil se colocar no lugar do outro! Quase impossível. Mal posso escrever de mim, professora, vou escrever do outro? Não consigo, não consigo criar um personagem que seja diferente de mim... Conseguem. Conseguiram. E cresceram, e podem – e vão - crescer ainda mais. Nesse exercício tão difícil e tão importante que é aceitar o diferente, aceitar o estranho, e se colocar no lugar do outro.Isso também é ser. Ninguém é, se não olha para fora de si mesmo, e não consegue identificar um pouco de si no outro, por mais diferente e estranho que o outro seja. Acho que essa foi uma das grandes coisas que talvez tenhamos aprendido no curso de literatura deste ano.
Lemos sobre o índio valente, cuja tribo havia sido massacrada e vagava com seu pai, cego, pela floresta, e que chorara na presença da morte, na presença de estranhos, ao lembrar-se do pai só e cego, perdido na floresta. Lemos como o índio foi solto e depois rejeitado pelo pai por sua suposta covardia. Lemos a luta que houve, e que não houve guerreiro mais valente que aquele índio que chorara.
Lemos um livro inteiro onde as coisas mal acontecem. Onde o narrador, um homem mais rico e letrado, quer falar de uma nordestina quase analfabeta, que mal sabia falar, mal tinha consciência de si. Que nunca experimentara a felicidade. Que tem sua hora da estrela quando – como um operário na construção - anda na contramão, atrapalhando o tráfego. E morre. E não há ninguém que preste no livro, e a Clarice ainda por cima escreve prosa como se escrevesse poesia.
E depois lemos sobre o homem do subsolo, a classe reclamando que só líamos livros tristes, e poemas tristes, e lá vamos nós ler Dostoiévski.
"Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por que não consegui tornar-me sequer um inseto, Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno." (p. 19)
Pois é, esse daí não consegue nem ser um inseto decente. Looooooooooseeeeerrrrrrr. Doeeennnnteeeeee.
- Sabe quem é esse cara, professora? Você já viu aquele programa, linha direta?
- Já.
- Então, ele é um desses caras que aparecem no linha direta, esses caras doentes.
- Será? O quê vocês acham, gente?
- Eu acho que não... - falou uma menina, bem tímida mas convicta - porque... sabe? O que é legal nesse cara é que ele tem consciência de como ele é ridículo e patético, ele sabe disso. Ele tem raiva do mundo mas acho que tem raiva principalmente de si. E... sabe? eu acho que eu até me identifiquei em algumas partes do livro... não assim com essa raiva toda que ele tem do mundo, de todo mundo, tal... mas da vergonha que ele sente de si próprio às vezes... da vontade que ele tem de não falar com ninguém e ser grosseiro com todo mundo... De como às vezes ele é superior a todos, e às vezes se sente super inferior.
- Sabe o que eu gostei no livro? - um outro aluno - como ele sempre pensa que deve fazer uma coisa e nunca faz aquilo que pensa que deve fazer. Ele está lá num lugar e pensa: eu preciso dar um soco nesse cara, ou: eu preciso ir embora... mas fica lá, andando de um lado para o outro e não faz nada daquilo que gostaria de fazer, ou que acha que tem que fazer. Eu achei isso muito legal.
- Eu acho que esse livro me ajudou a entender melhor as pessoas...
- Por quê?
- Ah... sei lá... o cara tem coragem de falar um monte de coisa que todo mundo sente um pouquinho mas não tem coragem de confessar, ele vai lá e confessa, sabe?
Uma menina vira para o outro que disse odiar o cara com todas as forças:
- Você nunca faz uma coisa da qual se arrependeu depois? Ou deixou de fazer por falta de coragem e depois ficou pensando nisso durante dias e dias, e isso virou uma coisa enorme na sua cabeça? Você nunca quis fazer algo e acabou fazendo justamente o contrário? Eu fiquei com um pouco de pena do cara, sabe? mas gostei dele, de uma certa maneira, sei lá.
- Eu não tô gostando do livro porque dá aflição e angústia.
- Eu acho que o cara devia tomar coragem, se matar e deixar a gente em paz.
- Por que alguém vai escrever um livro sobre um cara desses?
E aí a gente conversou que a razão, o bom senso, a racionalidade não são suficientes para explicar o que é o ser humano. Que o cara, e a gente, tem impulsos auto-destrutivos, que todo mundo tem... Que nem sempre a gente age com racionalidade, quem nem sempre dá, e vale a pena, ser um winner na vida. Que tudo isso aliás é meio ridículo, que há o subsolo do humano, e que esse não pode ser negado. Porque todo mundo aqui sabe que a gente tem às vezes prazeres e desejos perversos... todo mundo aqui já fez alguma vez alguma coisa muito nada a ver, perigosa ou auto-destrutiva prá caramba, só para flertar com o perigo, para testar limites, sei lá. Pô... Que todo mundo é meio loser mesmo e ainda bem, porque essa figura do cara que sempre consegue tudo aquilo que quer, que sempre faz tudo aquilo que acha que deve fazer, que tá sempre feliz, realizado e se dando bem com todo mundo... é muito chata. Sabem, o homem do subsolo leva ao máximo um lado que todo o mundo tem, vamos chamar de lado loser, para vocês verem o ridículo dessa expressão. Ainda bem que alguém escreveu um romance sobre ele, porque o ser humano não tem controle absoluto sobre si próprio, tem o inconsciente, tem um prazer que a gente sente na dor, tem um monte de coisa... Essa obrigação de ser feliz, de se dar bem em tudo, de conseguir as coisas, é na verdade não só ridícula como muito dura também.
E o pior: ele é um cara que tem a consciência hipertrofiada. Pensou demais, observou demais, refletiu demais. A resposta possível que ele dá para tudo isso, para o ridículo das pessoas que observou, para a hipocrisia do mundo, os bajuladores, etc. é a inércia. Pois para ele não adianta fazer alguma coisa, porque nada do que ele fizer vai mudar ou alterar o estado do mundo e das coisas. Mas isso não impede que ele sinta raiva, muita raiva. O discurso dele é inteiro raivoso, e é bacana um discurso raivoso, o mundo precisa também disso. E eu acho que dá para agir também, não precisa entrar na inércia porque o mundo é uma droga, a ação vale a pena, e no mínimo faz a gente ficar mais feliz.
O mundo não está dado, ele não é harmonioso, é a gente que tem que construir o nosso mundo, sabe? Ir juntando as pecinhas partidas, criando nossos sentidos... o romance moderno trata justamente dessa construção: o herói do romance moderno tem que construir a si mesmo e ao mundo, criar um sentido para si e para as coisas do mundo. Esse é o grande tema.
E muita gente abdica de si mesmo e dos seus sonhos, se aprisiona ao máximo para poder inserir-se no mundo, não virar um loser, ganhar muito dinheiro, sei lá. Tem muita gente muito infeliz por aí, gente demais. E é difícil mesmo. Porque por outro lado ninguém quer virar uma barata ou um personagem do Dostoiévski que nem barata conseguiu virar. Mas é bacana a literatura mostrar que o mundo é um pouco isso aí mesmo. Que é uma batalha a gente ser fiel a nós mesmos, e para isso a gente tem que lembrar o tempo inteiro que essa construção do mundo e de nós mesmos nos dá uma coisa muito muito preciosa e bacana: liberdade. Ninguém está predestinado a nada, ninguém tem um lugar fixo, cada um pode ser livre para viver seus desejos, construir sua vida, lutar pelos seus sonhos, lutar pela construção de um mundo melhor. A resposta para esses livros não precisa ser uma tristeza e uma depressão, pode ser pelo contrário: ação, e mesmo, talvez, um certo alívio, porque não é humano vencer, se dar bem e ser racional o tempo inteiro, e esses livros mostram que nem é isso que interessa.
Que vocês sejam. Muito fiéis a si mesmos, que consigam, nesse mundo louco e desigual, encontrar caminhos verdadeiros e que lutem sempre para viver de acordo com suas verdades, desejos e sonhos. Que possam ter uma vida muito verdadeira, e feliz. Quando vier a questão, ser ou não ser, espero que vocês possam sempre responder que sim. Sejam. Vivam. Sejam grandes, inteiros, sejam felizes. Eu acho que dá.
Com todo meu amor,
Lu
Oi Lulu!!! Que bom que você voltou!!! Já lí tudo sobre "Lili na escola", já fiz mil anotações! Como já falei no post anterior, começo agora meus estágios e estou muito ansiosa! Não sei se é melhor, pra quem não tem prática, pegar uma 5ª, uma 6ª ou uma 8ª.
ResponderExcluirPor favor, continue dando essas dicas maravilhosas!!!
Grande abraço!
Thais/Poa
Luana, viu só? Escreveu. E bonito. Às vezes faz um bem danado agente ler/ouvir certas coisas.
ResponderExcluirPara mim, serviu.
Beijo, menina
Lulu, querida,
ResponderExcluirLi com muita emoção o seu texto. Essa coisa de despedida, de balanço de ano, de pesar o que fizemos e como fizemos, sempre mexe comigo. Principalmente quando, com certeza, refere-se a lições que ficarão para sempre, pela vida inteira. Ter relembrado todos esses livros, também importantes em minha formação, me colocou mais perto do que você estava sentindo. Tenho certeza absoluta de que todos esses meninos serão. Como a professora deles é, foi, e sempre será.
Estou muito feliz com sua volta.
Grande beijo
Thaís,
ResponderExcluirque bom! Sabe, todas as séries são difíceis. Depende muito do seu jeito. Há quem não goste de criança, prefira lidar com adolescentes. Há quem curta esse negócio de quinta série, com que cor de caneta é para escrever? essas coisas. Tenho amigos que só dão aulas para o ensino médio, eu adoro quinta série. Você vai se achando. Todo o começo é difícil. Respira bem fundo e seja muito honesta com seus alunos, e firme. Excelentes começos.
Lu.
Valter e Lord queridos,
ResponderExcluirObrigada. Mesmo. Ando à flor da pele, e os comentários de vcs me emocionaram. Meus amigos escritores, inteiros.
l.
Lulu, tenho muita curiosidade de saber como são as tuas aulas de gramática! Na faculdade, os professores vivem dizendo pra gente não seguir os velhos hábitos de ensinar a velha cartilha, com suas definições, exercícios sempre iguais etc. Trabalhar diretamente com os diferentes gêneros. Na prática é assim?
ResponderExcluirQuem sabe um post com várias dicas de como se trabalhar gramática de uma maneira que seja interessante pra turma??
Um abração,
Thais
oi Lulu.
ResponderExcluirjóia vc voltar.
além das sacadas boas do dia, oq gsto e muito de ler no seu blog é o dia a dia na escola. sabe sou estudante de letras, mas ainda não me decidi se leciono ou não, mas com suas leituras a balança pesa pra ser professor, mas sei lá..
bacana o teu discurso e espero agora ler suas aventuras com novos alunos.
abs dum leitor de seis meses
Oi LuLu te encontrei nesse planeta com névoas por todos os lados eu consegui te enxergar, vc é bela como as holandesas e zooropéias.
ResponderExcluirO sono e o cansaço tavam quebrando as leituras do corpo, o grano duro cozinhou demais, o molho esfriou, sua face brilhou, seu sorriso foi além e, qdo Monteiro Lobato preparava-se para entrar na estória, apareceu algo chamado sublime, chegou de mansinho como quem nada quer, se instalou, acariciou os relevos, sentiu o revoir da grande beleza e adormeceu.
Lulu, gosto muito de suas escritas, encorajam a escrita, como a vida: uma grande e bela obra de arte. Convite feito convite aceito.
Dawid Copeerfield - o q tá aprendendo com o Mr M.