Dessa dor ela não sabia nada. Não sabia nada; era desconhecida, nova e ruim. Agora a situação trazia a medida exata da descoberta. Trazia a marca dele. Marca de homem, maior que os barulhos da rua. Tinha um jeito de mulher sozinha, bem do jeito dela querer ser. Porque queria. Tantos do lado e mesmo assim permanecia no silêncio grande. Silêncio de querer saber adivinhar do fundo das coisas aquilo que as pessoas eram. O silêncio onde ela queria morar.
Trazia consigo a marca dele, homem velho que era. Das coisas não vistas. Ela preferia não dizer nada, sob o barulho da rua de fora. De fora era a novidade da traição.
Como coisas assim acontecem acontecem logo sem que se saiba. Ela não sabia de ninguém e era apenas vida mal acabada. As cores do cabelo dela, não havia cor igual, e ele gostava de não tirar os olhos dos fios do cabelo dela que olhava para baixo resmungando não. Isso antes.
Um chuvisco havia começado. Era hora de sair de casa. Desde a roupa a ser posta até o batom tudo era um fazer-se desmesurado. Para ser aquela que nenhuma mais fosse, e poder encontrá-lo. Era o piso do elevador, era a bolsa cheia de batom, caneta e coisas de bolsa da vida inteira. Embaixo era chuva, que aumentava.
Os pés na rua, o sapato preto de todos os dias. A rua molhada de luzes vermelhas, cheias de homens: qual desses? De novo, sete vidas, ela cai e levanta, cai e levanta, mas agora... A pele cobria o cérebro, responsável por toda desgraça, e ela suava frio, andando, sempre. Era noite sozinha, bem só em busca da rua.
Se homem, era então verdadeiro o andar solitário, fotografando pela retina dos olhos o acontecer das coisas. Já mulher acontecia do andar ser falso, fingido e inseguro. Não... eu não sou... tô só andando sozinha na noite, na esquina, desculpa, tudo bem...
Do mundo sem vida, ele permanecia quieto, por cima das nuvens. Seu corpo traído, caído pela traição. Os homens eram como caminhões sem freio algum. Não importava o resto. Queria vê-lo, achar sua casa, mesmo a essa hora da noite, mesmo com a chuva e tudo. Um escândalo provável. A porta vermelha da casa dele. Era rosa, o muro da casa, mas ela sabia que à noite o rosa é rubro, escarlate. Era a casa dele.
O andar torcido. Vontade não bastava. A casa não era perto, pertinho, mas ela saíra tão determinada. Era bom encontrá-lo e ver-se vermelha de faróis próximos de novo. Mesmo que o fim fosse certo, não era mesmo amor o principal. Ela queria coisa de mulher. E tanta vontade, mas tanta vontade e nada da casa, ela que nem sabia mesmo ao certo onde ele morava. O muro rosa à noite fica como vermelho. A chuva caía quieta.
Cada polegada do andar solitário fazia saber do passo dado. Cada polegada de passo que ela andava fazia querer um passado maior que pudesse contar de tanto merecimento. Ela queria. E cada polegada de andar era querer demais.
Quase de graça a consciência transbordava. A pele, grande responsável pelas coisas do amor, já encharcada. Amor de graça, de pouco contato jogado na cara. E quem garantia? Quem era garantia do muro não ser mesmo de branco puro de parede qualquer?
Nada de espertezas. O muro era vermelho e ela sabia mais ou menos onde ficava pela cidade. Era só continuar andando firme, na determinação de uma noite não repetida. Pelo menos essa, sem estar só.
Nos passos perdia-se a importância do cabelo já tão molhado, da saúde já um pouco fraca, dos ônibus que não vinham, da chuva que aumentava, do dinheiro do táxi, que não tinha, da mãe, do pai, do avô e da família, amém. Dos passos era tudo para depois, se depois depois houvesse.
Ela andava e andava só por causa disso. Queria tudo dele, mesmo sabendo da certeza do não, eu já disse, você nem pode entrar mais aqui, não tem nada mais seu aqui. Ela sabia mas caminhava como se sim.
O lugar era sempre ainda e ela precisava do lugar nenhum, a casa não aparecia enquanto ela percorria as ruas da cidade. Como se todos os desejos fossem águas de pote quebrado, como se cada passo pudesse esquecer, como se entre as coisas houvesse encaixe e como se a verdade fosse ali, ela continuava andando. E andava até mesmo como se ele existisse.
Era uma história de lonjuras. Uma história de mulher e de homem juntos se vendo entre sorrisos de descoberta do outro e o sorriso era maior. História de silêncio, de brilho nos olhos quietos. História já partida, mas ela não queria saber.
A chuva caía mais forte. Foi uma história quieta e era em busca dessa maior história do mundo que caminhava. Uma esquina atrás a bolsa caíra sem querer, e ela perdeu as folhas de documento, talão de cheque, cartão do banco, cartão de crédito, agenda de telefone, lenço de papel, blush, base, rímel e batom. Ficaram no chão, espalhados pela chuva bem junto dela, que tinha pés e por isso andava. E fazia uma festa pela noite escura afora. Um pouco perdida nas ruas da cidade, tateando o caminho, reconhecendo alguma casa mas ainda não, não era essa, cadê?
A maquiagem do rosto tão bem feita, bochecha de blush vermelho, sobrancelha feita de sombra azul, cílios de rímel preto, e mesmo o perfume, tudo borrado. A decadência completa, uma mulher de rímel borrado na chuva: oi, vim te ver.
Era noite de chuva, a noite mais chuvosa que ela já vira.
Todos abrigados e ela ali, gostando, a chuva lhe dava toda a solidão do mundo, toda a solidão necessária do mundo. Ninguém prestava atenção.
Numa esquina ela tirou os sapatos que estavam mesmo encharcados e atrapalhavam. A água tamanha escorria, destruía calçadas, todos os bueiros transbordavam, os carros estacionados formavam ondas no asfalto. Árvores com galhos quebrados, ninguém mais na rua. Trânsito quieto. Era tempo de enchente.
Doença, bicho do pé, água forte, chão invisível, algum vidro solto, algum cano quebrado, bichos, ratos da cidade e buracos obscuros faziam parte do resto da sua vida. Andava descalça e calma, sem documento, sem sombra, no meio da enchente, em busca do muro rubro, muro vermelho. A chuva era infinita. Queria porque queria.
Sorriso pequeno e andar quieto, continuava de poucas palavras, como sempre havia sido. E a ventania era tanta que as portas de todos os bares e casas e lojas, e as portarias de todos os apartamentos e clubes e boates estavam fechadas, e mesmo aqueles locais mais secretos onde a porta é sempre aberta, mas nunca se vê alguém entrar, estavam fechados, e mesmo as igrejas e todas espécies de outras casas de Deus, também fechadas.
O andar forte de frio e dor nas juntas, queria, e continuava querendo, o rosa azul rubro vermelho da casa dele. Em outros cantos, casas despencavam morro abaixo. Era tempo de enchente em meio aos passos daquela que andava só, a água pela cintura, já sem calça e sem blusa, de calcinha e sutiã pelo meio da rua vazia, em direção à casa do muro azul rosa amarelo vermelho rubro, a casa do muro do lugar dele.
E na última esquina ela riu. A última peça de roupa, a água levou. Era uma mulher que andava nua e ninguém via.
E nua, aquela mulher andava sobre os destroços, no silêncio profundo do banho de água pura. E nua, aquela mulher falava sozinha, no meio da noite de mais chuva, a noite do não dormir. E nua, aquela mulher criadora, mergulhou no colorido de luz dos destroços da casa vermelha.
Lu, querida, lindo! Aliás, ontem estavamos mulheres belíssimas! Adorei. Beijos.
ResponderExcluirConto maravilhoso!!!
ResponderExcluirpô gente, brigada. tava já encanada, nenhum comentariozim... :)
ResponderExcluirPatricia, adorei ontem também!! belíssima é vc, com suas calças de couro!ah.. vamos repetir.
Eu vim aqui um monte de vez ontem e nada de vc atualizar, aí hoje deparei com estes textos e só de olhar sei que este é daqueles pra imprimir e ler (detesto ler no pc), mas hj não tive tempo, pq texto assim tem que ter cabeça, estar leve ou pesada e perder o peso com o texto, então amanhã eu leio, pq hj dei aula de maã e de noite e tô com sono.
ResponderExcluirAbraço.
Janaína
E na última esquina ela riu. A última peça de roupa, a água levou. Era uma mulher que andava nua e ninguém via.
ResponderExcluirE nua, aquela mulher andava sobre os destroços, no silêncio profundo do banho de água pura. E nua, aquela mulher falava sozinha, no meio da noite de mais chuva, a noite do não dormir. E nua, aquela mulher criadora, mergulhou no colorido de luz dos destroços da casa vermelha.
Isso me fez lembrar o que o Chico diz, nesta linda canção, interpretada, lindamente, por Fátima Guedes, em seu songbook (ouça, clicando no título):
Ai, como essa moça é distraída
Sabe lá se está vestida
Ou se dorme transparente
A noiva da cidade
Francis Hime & Chico Buarque/1975-1976
Para o filme "A noiva da cidade" de Alex Viany
"Tutu-Marambá não venha mais cá
Que a mãe da criança te manda matar
Tutu-Marambá não venha mais cá
Que a mãe da criança te manda matar"
Ai, como essa moça é descuidada
Com a janela escancarada
Quer dormir impunemente
Ou será que a moça lá no alto
Não escuta o sobressalto
Do coração da gente
Ai, quanto descuido o dessa moça
Que papai tá lá na roça
E mamãe foi passear
E todo marmanjo da cidade
Quer entrar
Nos versos da cantiga de ninar
Pra ser um Tutu-Marambá
Ai, como essa moça é distraída
Sabe lá se está vestida
Ou se dorme transparente
Ela sabe muito bem que quando adormece
Está roubando
O sono de outra gente
Ai, quanta maldade a dessa moça
E, que aqui ninguém nos ouça
Ela sabe enfeitiçar
Pois todo malandro da cidade
Quer entrar
Nos sonhos que ela gosta de sonhar
E ser um Tutu-Marambá
"Boi, boi, boi, boi da cara preta
Pega essa menina que tem medo de careta"
bjo,
Clé
Em tempo:
ResponderExcluirTive de olhar no CD (vol. 4), pra checar: Fátima Guedes canta acompanhada do ótimo violão de: Lula Galvão e da flauta de: Ricardo Pontes.
Música incidental: "Eu te amo" (Tom & Chico), que Ana Carolina canta, acompanhada do piano incrível de Cristóvão Bastos, tb no songbook do Chico (vol. 8) [clique no título pra ouvi-la]:
Eu te amo
Tom Jobim & Chico Buarque/1980
Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta, agora, como hei de partir
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu(Seu) paletó enlaça o teu(meu) vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus(Meus) seios inda estão nas minhas(tuas) mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir
Pô Janaina.. te entendo... e o final de trimestre com pilhas de correção? putz...
ResponderExcluirUm beijo bem grande, sempre,
Lu.
Clelia,
que lindo!!!!!
:)
Pronto, voltei mais leve e ainda bem que esperei pra ler, senti, com meu faro de leitora, que este era pra ler deitada e viajar...
ResponderExcluirAchei inquietante, emocionante, vibrante, eu fui lendo e sentindo a mulher, sentindo o rosa que poderia ser "vermelho" ou até "branco puro".
Sentindo a insegurança, as lembranças os pensamentos, as angústias e querendo logo que ela chegasse na casa e depois vendo que ela não chegaria e duvidando se a casa realmente existia...
O que que se fala dum conto destes?
Tem mais uns 15 ou 20 destes?
Se tiver publica um livro que eu compro. De sério. Coisa assim não pode ficar em arquivo de blog, tem que ganhar as ruas, assim como a água da enchente...
Abraço.
Janaína.
Pô Janaína,
ResponderExcluirPuxa!! Tô meio boba ...
meu abração procê, uai!
Lu.