Não há nada mais difícil do que sair de casa. Mesmo para aqueles que dizem que amam viajar, que são despreendidos e não sentem saudades nem falta de nada e que dizem chegar em qualquer lugar e se adaptar totalmente, é sempre difícil sair de casa. Sair de verdade. E casa, aqui, pode ser tomada no sentido de espaço privado, doméstico, conhecido, domesticado, obediente. Em casa sabemos quais são as regras, os gostos, as expressões. Podemos antecipar reações, calcular riscos. Sair de casa, para valer, significa estar num espaço que não é seu, em meio a códigos não dominados, estar aberto a surpresas e ao desconhecido. A entrada nesse espaço pode ser violenta ou suave, mas ela nunca é fácil. É como a primeira noite com um homem. Há um momento de re-conhecimento, de si e daquele que está a sua frente. Não é à toa que a antropologia discute esse tema sem parar. E esse é um dos temas do novo livro do Alex Castro.
Pode-se dar uma volta ao mundo, sem que se saia de casa. Nos casos mais drásticos, aqueles que conhecem o cardápio inteiro do McDonald´s de todos os países que visitaram; aqueles que colocam roupa de safári para andar pelo Rio de Janeiro; aqueles que simplesmente, não se abrem para novas experiências e não aprendem nem a falar obrigado e bom dia na língua local. Em casos mais disfarçados: aqueles que olham para o mundo sempre em termos de comparação, vangloriando-se de si próprios, e não alteram um dedo mindinho para conhecer, de fato, o outro. E saem de casa, passam por outras casas, e estão sempre no mesmo lugar. O livro Radical, Rebelde, Revolucionário é um relato de um viajante pesquisador, que um pouco por obrigação de ofício e um pouco por natureza pessoal, saiu de fato de casa. E foi passar um mês em Cuba.
O viajante intelectual, o viajante cronista.
Essa é a espinha dorsal do texto. A viagem começou antes do avião, bem antes. Não somente no fazer do projeto que justificasse uma viagem de estudos paga, mas no mergulho em filmes cubanos, na escuta diária de rádios cubanas, da leitura sistemática de romances cubanos. O trabalho do intelectual é sempre um trabalho bastante difícil, apesar da boa vida que esses caras levam. É difícil porque se não há essa disposição do sair de casa, o trabalho está condenado à mediocridade. Me explico melhor: se ao terminar a tese, o doutorando estiver achando e pensando as mesmas coisas que pensava e achava ao iniciá-la, o trabalho não foi bom. O intelectual sério permite ser alterado por seu objeto de estudo, mergulha nele, torna-se, também, objeto do objeto.
Se o cara for estudar Homero, tem que saber grego. Não somente saber, deve ler com fluência, ter no coração ( e como perdemos sempre o significado mais belo do verbo decorar) passagens inteiras, conhecer as personagens como se fora amigo íntimo de todas elas. Além disso, vai ter que dar conta do que já se escreveu sobre Homero, das principais linhas interpretativas, dos debates existentes, e assim por diante. Pois bem, uma parte significativa do trabalho de doutorado desse viajante será sobre a literatura cubana no século XIX. Para a frustração do historiador, não há como ir ao século XIX, mas dá para ir à Cuba, e ler os romances, e ler os jornais, freqüentar as bibliotecas e conhecer as gentes. Para a satisfação da pessoa, o lugar é o máximo, e o escritor também tirou seu pitaco da experiência e escreveu esse relato de viagem, que deu no livro.
Da inverossimilhança da história:
Antônio Candido fala que a verossimilhança da literatura é dada pelos detalhes. Quanto mais detalhes aparecem, mais as personagens, lugares, paisagens tornam-se passíveis de existência para a cabeça do crédulo leitor. Alex Castro nos avisa:aqui, tudo é ficção, tudo é inventado, pois “a história de Cuba é impossível demais para ser verdade”. Como o livro é cheio de detalhes, tolinhos, lemos como se fosse verdade, e algumas partes até emocionam.
E a história inventada não é a história de Cuba, nem a história das pesquisas feitas, embora elas apareçam um pouco também. A história inventada é a de um lugar onde chove todos os dias, tempestades de dez minutos, o povo se abriga nas marquizes e depois volta a viver suas vidas. Onde é impossível andar estando seco, onde as pessoas fumam charutos que desafiam a lei da gravidade, onde não se encontra bacon, e o jornal é usado para limpar a bunda. Lugar de um sistema monetário completamente doido, que o Alex explica bastante mas que eu não entendi direito até agora. Lugar onde a todo momento se é abordado, por jineteros, polícia... onde se anda livremente pelas ruas às três da manhã, sem medo de assaltos ou violências. Histórias de amizades, de andanças, da ida a um balé, das casas, dos encontros e das pessoas que o Alex encontrou e conheceu.
Uma história de amor.
Há no livro inteiro um sabor acridoce, não se trata somente das belas histórias do povo cubano. Pois o Alex também escapa da armadilha que seria escrever esse livro como um libelo pró ou anti Cuba. Se os esquerdistas mais ferrenhos não vão gostar, os direitistas também torcerão seus narizes. O cronista é ponderado e, se enxerga poesia no fato de que os antigos palacetes são agora habitados por uma população negra e pobre, escreve a dado momento que visitar Cuba é como visitar uma prisão; ele, viajante, pesquisador, tem uma liberdade que seus amigos cubanos não possuem. Assim, em meio ao povo culto, a pobreza e escassez de recursos; em meio `a simpatia e acolhimento, a obrigação de anotar em caderninhos todos os que entram e saem... O tempo inteiro os relatos oscilam entre o doce e o amargo.
Voltemos à cama, ao tal do primeiro encontro. Pode ser que os corpos se estranhem, que um queira ir para um lado, outro para outro. Que o início seja difícil mas convide a uma nova tentativa. Que portas sejam abertas. Alex Castro foi conhecendo as ruas, casas e pessoas de Havana como quem conhece uma mulher. E o livro trata da história de um amor crescente. Não idealizada, repito. Uma mulher sofrida, envelhecida, em suspense absoluto quanto ao futuro; uma mulher dividida, uma mulher bela, de história singular. Como ele é generoso, e a favor do relacionamento aberto, divide essa mulher com a gente, dá dicas, orienta, conta segredos e ainda mostra fotos.
E ao lermos, crédulos, até acreditamos que essa mulher existe. Vale a pena conhecê-la, trata-se de uma bela viagem, para uma casa muito diferente, de fato, da nossa. Entremos.
E não percam o blog promocional do livro, com fotos, trechos de capítulos e espaços para comentários: radical, rebelde, revolucionário.
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no prelo: resenha de Virginia Berlim. aguardem.
beijos,
Lu.
update: quantos erros de digitação é possível cometer num simples PS? de qualquer jeito, acho que eu ultrapassei a cota. desculpas envergonhadas. lulu.
Ah, o Alex e vc são lindos e fodões. :D
ResponderExcluirMinha grana tá mais do que guardada pro dia 21, e estou ansiosa pra ter os livros nas mãos. :)
Eu também fiquei interessado no livro sobre as crônicas de Cuba.
ResponderExcluirE sua resenha ficou muito legal...
Vc bem podia ler meu livro também, né? (olhar pidão)...
Beijo.
VP>
Lu,
ResponderExcluirA resenha ficou ótima. Deu vontade de ler o livro. Acho que é esse o objetivo das resenhas, não é mesmo? Ou lemos a obra, ou fugimos dela depois que a descrevem. Gostei da comparação entre corpos na cama, esse estranhamento inicial. Aliás, encontro esse sentimento quase em todo início de leitura.
Grande beijo