Minha melhor hora do dia é a minha hora mais solitária. Cedo, muito cedo de manhã. Quanto mais cedo melhor, quando a maioria das pessoas ainda dorme, e a cidade mal amanheceu. Agora, por exemplo, são vinte para as seis da manhã. Acordei escrevendo. Às vezes isso acontece. Penso em forma de escrita, sonho com palavras, formo textos inteiros, sem imagem alguma. Continuo, em sonho, o livro que lia na cama, num enredo enlouquecido; desfaço destinos inteiros, assassino estilos de linguagem, tudo. Ou penso em forma de conversas que não tive, que preciso ter, gostaria de ter. Imagino ligações inteiras, diálogos inteiros, que às vezes se concretizam, às vezes não. Penso tanto que chego até a gesticular enquanto converso em silêncio e só. As palavras vêm tão fortes que preciso levantar e escrever, algo, uma besteirinha, uma confissãozinha, uma massagenzinha no próprio umbigo, essas coisas que o formato blog permite que a gente faça, com muita desfaçatez e bem pouca vergonha. Antes era diário, agora, que estou ficando velha e mais cara de pau, escrevo por aqui mesmo. Se não escrevo, acabo falando sozinha, e aí é bem pior. Nunca penso em idéias, abstrações, problemas matemáticos, músicas, construções teóricas. Penso em monólogos. Às vezes, penso em aulas. E meu pensamento me impele a escrever, para que eu tome conta dele e ele não me domine. Escrevo desde que aprendi a escrever, e isso me acalma, me organiza, me centra. E a melhor hora para escrever é cedo, muito cedo de manhã, o ar fresco da madrugada, um ar mais limpo, nessa cidade imersa em poluição. Uma hora solitária, e uma hora de poucas amarras, de cabeça fresca e limpa.
Escrevo rápido, de uma vez só, e como devem perceber todos os leitores, sem muita revisão.
Se releio muito aquilo que escrevi, fico aflita e nervosa, mal aguento, é uma infantilidade minha que eu tenho, uma das mil. Mal me aguento, me olho no espelho de lado também. Meu marido morre de dar risada.
Escrevo sem saber o que vem. Nessa hora, a melhor hora, escrevo ainda em jejum. Confesso que nem escovei os dentes. Mas são as palavras, a droga das palavras, que me chamaram com urgência. Escrevendo, volto a existir, acordo, me reconheço e remonto, sério. Tem gente que se acalma correndo, pintando, moldando, calculando. Eu me acalmo escrevendo. Nesse momento, ao escrever, preciso esquecer um pouco dos outros também. Da família, amigos, amores. Porque senão escrevo com muito cuidado, ou melindres, ou recados, e a escrita perde a verdade e eu fico com muita vergonha. É preciso escrever sem vergonha e com coragem. Vixe, é difícil, mas se escrevo pensando no que fulano vai achar, não escrevo nem uma linha que preste.
Escrevo porque quero ser lida. Para, como fala o Rafael Galvão, receber elogios. Escrevo porque as palavras são minhas companheiras. Eu as entendo. Escrevo porque sim, e porque aprendi que não é tão importante, simplesmente, é bom. Me dou bem com as palavras, compreendo a maioria delas. Assim como entendo as berinjelas, os pimentões, as alfaces. Não entendo o arroz, por exemplo. Sempre erro. Toda vez que tento fazer um arroz, erro. Não entendo. Não entendo a filosofia, não entendo os truques, sou incapaz de improvisar, em se tratando de arroz. Fica sempre, no máximo, um arroz medíocre. Não entendo os tempos necessários para a cocção, o melhor tempero, a diferença entre colocar ou não sal na água, tampar ou não a panela, colocar água fervendo ou fria. Não lembro, não entendo, não sei. Já de berinjelas entendo tanto que só de relance, andando na feira, já sei reconhecer se aquela berinjela presta ou não. Conheço o peso, a cor, o brilho ideais. E sei o que fazer com elas, e se não houver azeite, faltar o sal, acabar o queijo, tenho alternativas. Sei como cortá-las, amassá-las, sei quanto tempo devem ficar no fogo. Sei grelhá-las, queimá-las e fazer de seu recheio um purê, fritá-las ( e deus me perdoe, que delícia são berinjelas fritas, ou à milanesa!), assá-las. Conheço e respeito, as berinjelas. Com sementes são mais ardidas, sem semente, mais suaves. Se dão bem com o azeite, o sal, a pimenta do reino. Têm um casca firme, que permite o recheio, e nesse caso se são bem com pão, carne moída, queijos. Podem permanecer duras, inteiras, cortadas finas ou grossas. Não páro de querer conhecer, as berinjelas. São infinitas.
Um bom cozinheiro entende e respeita a comida que faz. Um bom churrasqueiro sofre ao ver um pedaço de carne mal tratado; mal cortado, passado demais, temperado da maneira errada, espetado ou fatiado sem dó. Há aqueles que entendem especialmente os pães, os mistérios da fermentação, a diferença de uma boa farinha, a dança da sova da massa, a temperatura ideal do forno. Sabem manejar receitas, fazem experimentos. Outros, são especialistas em bolos. Nunca murcham, nunca ficam secos demais, crus demais. Constróem camadas, sabem derreter o chocolate, usar o açúcar, o ponto ideal da clara. Já outros, compreendem as massas, os molhos, e assim vai. Há que se compreender os alimentos, respeitá-los, conhecê-los. E assim retira-se deles o que eles podem ser de melhor. É essa a arte da boa cozinha.
O mesmo se dá com as palavras. É preciso conhecê-las, saber usá-las, manejar bem os temperos, com criatividade e respeito. Ouvir seu som, sentir sua força, saber o tamanho. Há palavras que cabem, outras não cabem. Palavras que combinam, outras não. Há textos longos demais, temperados demais, artificiais demais. E não há, talvez, pior erro numa cozinha. A melhor cozinha é a que usa ingredientes mais frescos, melhores, e os usa com toda simplicidade. Troco toda emulsão de vinagre balsâmico com toques de essência de maracujá regados a um reduzido de caldo de carneiro flambado sobre finas camadas de brotos de alface de Estambul, por uma boa salada de alface roxa e tomate com azeite, sal e limão. Pão com azeite. Uma massa grano duro com tomates. Nada de pizza de alcachofras cobertas por presunto de parma. Nem a alcachofra, nem o presunto, nem a pizza serão felizes no casamento. Uma pede forno, outra pede solidão, o presunto, então... é assassinado toda vez que é frito, assado ou qualquer coisa assim. Presunto cru é presunto cru, e assim deve ser comido. a arte está no modo de fatiá-lo, e na qualidade do bicho. Pronto. Fiquemos com a boa e velha marguerita. Sem muzzarela de búfala, por favor, que ela também não se presta a uma ida ao forno.
E quem agüenta uma pizza coberta de manjericão desidratado? Mesmo óregano... é mais difícil achar orégano fresco, mas a diferença é infinita. Uma ou duas folhas de um bom manjericão fresco em cima de cada fatia, e não falemos mais no assunto. E quem domina mesmo essa arte, vai saber que há uns cinco tipos de manjericão, de variados tamanhos e cores, que uns são mais doces, outros pendem para o amargo, outros têm uma certa ardência. E ao colocá-los sobre a pizza, se permitirá macerar alguns entre os dedos, e sentir o cheiro bom do manjericão fresco.
Um bom escritor faz o mesmo com as palavras, as redescobre, realça seus sabores, alcança suas possibilidades, não as maltrata, não força, não as obriga a ser o que não são. Conhece os substantivos.
De qualquer maneira, escrever e cozinhar me acalmam. E às vezes, quem sabe, a receita, o fazer, e a junção dos ingredientes até dão certo, e a gente oferece para as pessoas que a gente gosta. E as pessoas gostam, e é uma delícia.
Ou, às vezes, a gente acaba comendo tudo sozinha mesmo, mas aí não é tão legal.
p.s.: são sete horas, agora. Escovo os dentes, e volto para cama. Já acalmei os bichos de dentro, e vou dormir mais um pouco, afinal onde já se viu madrugar nas férias? Volto para cama, de birra mesmo.
um beijo,
Lu.
Escrevo rápido, de uma vez só, e como devem perceber todos os leitores, sem muita revisão.
Se releio muito aquilo que escrevi, fico aflita e nervosa, mal aguento, é uma infantilidade minha que eu tenho, uma das mil. Mal me aguento, me olho no espelho de lado também. Meu marido morre de dar risada.
Escrevo sem saber o que vem. Nessa hora, a melhor hora, escrevo ainda em jejum. Confesso que nem escovei os dentes. Mas são as palavras, a droga das palavras, que me chamaram com urgência. Escrevendo, volto a existir, acordo, me reconheço e remonto, sério. Tem gente que se acalma correndo, pintando, moldando, calculando. Eu me acalmo escrevendo. Nesse momento, ao escrever, preciso esquecer um pouco dos outros também. Da família, amigos, amores. Porque senão escrevo com muito cuidado, ou melindres, ou recados, e a escrita perde a verdade e eu fico com muita vergonha. É preciso escrever sem vergonha e com coragem. Vixe, é difícil, mas se escrevo pensando no que fulano vai achar, não escrevo nem uma linha que preste.
Escrevo porque quero ser lida. Para, como fala o Rafael Galvão, receber elogios. Escrevo porque as palavras são minhas companheiras. Eu as entendo. Escrevo porque sim, e porque aprendi que não é tão importante, simplesmente, é bom. Me dou bem com as palavras, compreendo a maioria delas. Assim como entendo as berinjelas, os pimentões, as alfaces. Não entendo o arroz, por exemplo. Sempre erro. Toda vez que tento fazer um arroz, erro. Não entendo. Não entendo a filosofia, não entendo os truques, sou incapaz de improvisar, em se tratando de arroz. Fica sempre, no máximo, um arroz medíocre. Não entendo os tempos necessários para a cocção, o melhor tempero, a diferença entre colocar ou não sal na água, tampar ou não a panela, colocar água fervendo ou fria. Não lembro, não entendo, não sei. Já de berinjelas entendo tanto que só de relance, andando na feira, já sei reconhecer se aquela berinjela presta ou não. Conheço o peso, a cor, o brilho ideais. E sei o que fazer com elas, e se não houver azeite, faltar o sal, acabar o queijo, tenho alternativas. Sei como cortá-las, amassá-las, sei quanto tempo devem ficar no fogo. Sei grelhá-las, queimá-las e fazer de seu recheio um purê, fritá-las ( e deus me perdoe, que delícia são berinjelas fritas, ou à milanesa!), assá-las. Conheço e respeito, as berinjelas. Com sementes são mais ardidas, sem semente, mais suaves. Se dão bem com o azeite, o sal, a pimenta do reino. Têm um casca firme, que permite o recheio, e nesse caso se são bem com pão, carne moída, queijos. Podem permanecer duras, inteiras, cortadas finas ou grossas. Não páro de querer conhecer, as berinjelas. São infinitas.
Um bom cozinheiro entende e respeita a comida que faz. Um bom churrasqueiro sofre ao ver um pedaço de carne mal tratado; mal cortado, passado demais, temperado da maneira errada, espetado ou fatiado sem dó. Há aqueles que entendem especialmente os pães, os mistérios da fermentação, a diferença de uma boa farinha, a dança da sova da massa, a temperatura ideal do forno. Sabem manejar receitas, fazem experimentos. Outros, são especialistas em bolos. Nunca murcham, nunca ficam secos demais, crus demais. Constróem camadas, sabem derreter o chocolate, usar o açúcar, o ponto ideal da clara. Já outros, compreendem as massas, os molhos, e assim vai. Há que se compreender os alimentos, respeitá-los, conhecê-los. E assim retira-se deles o que eles podem ser de melhor. É essa a arte da boa cozinha.
O mesmo se dá com as palavras. É preciso conhecê-las, saber usá-las, manejar bem os temperos, com criatividade e respeito. Ouvir seu som, sentir sua força, saber o tamanho. Há palavras que cabem, outras não cabem. Palavras que combinam, outras não. Há textos longos demais, temperados demais, artificiais demais. E não há, talvez, pior erro numa cozinha. A melhor cozinha é a que usa ingredientes mais frescos, melhores, e os usa com toda simplicidade. Troco toda emulsão de vinagre balsâmico com toques de essência de maracujá regados a um reduzido de caldo de carneiro flambado sobre finas camadas de brotos de alface de Estambul, por uma boa salada de alface roxa e tomate com azeite, sal e limão. Pão com azeite. Uma massa grano duro com tomates. Nada de pizza de alcachofras cobertas por presunto de parma. Nem a alcachofra, nem o presunto, nem a pizza serão felizes no casamento. Uma pede forno, outra pede solidão, o presunto, então... é assassinado toda vez que é frito, assado ou qualquer coisa assim. Presunto cru é presunto cru, e assim deve ser comido. a arte está no modo de fatiá-lo, e na qualidade do bicho. Pronto. Fiquemos com a boa e velha marguerita. Sem muzzarela de búfala, por favor, que ela também não se presta a uma ida ao forno.
E quem agüenta uma pizza coberta de manjericão desidratado? Mesmo óregano... é mais difícil achar orégano fresco, mas a diferença é infinita. Uma ou duas folhas de um bom manjericão fresco em cima de cada fatia, e não falemos mais no assunto. E quem domina mesmo essa arte, vai saber que há uns cinco tipos de manjericão, de variados tamanhos e cores, que uns são mais doces, outros pendem para o amargo, outros têm uma certa ardência. E ao colocá-los sobre a pizza, se permitirá macerar alguns entre os dedos, e sentir o cheiro bom do manjericão fresco.
Um bom escritor faz o mesmo com as palavras, as redescobre, realça seus sabores, alcança suas possibilidades, não as maltrata, não força, não as obriga a ser o que não são. Conhece os substantivos.
De qualquer maneira, escrever e cozinhar me acalmam. E às vezes, quem sabe, a receita, o fazer, e a junção dos ingredientes até dão certo, e a gente oferece para as pessoas que a gente gosta. E as pessoas gostam, e é uma delícia.
Ou, às vezes, a gente acaba comendo tudo sozinha mesmo, mas aí não é tão legal.
p.s.: são sete horas, agora. Escovo os dentes, e volto para cama. Já acalmei os bichos de dentro, e vou dormir mais um pouco, afinal onde já se viu madrugar nas férias? Volto para cama, de birra mesmo.
Bom dia a todos.
um beijo,
Lu.
...
ResponderExcluir(longo suspiro)
.
.
.
(lágrimas nos olhos)
.
.
.
(silêncio)
.
.
.
(depois que passar a catarse eu volto)
Janaína.
Saboroso esse texto. Também adoro as madrugadas, ainda que para isso eu tivesse que dormir cedo, coisa que é um sonho distante na minha atual rotina... Beijo.
ResponderExcluirLulu, vc precisa me apresentar para as berinjelas!
ResponderExcluirEu também gosto das madrugadas, mas prefiro as horas iniciais ;)
Foi por textos como esse que votei em vc.Beijos.
ResponderExcluirBeringelas, Italo Calvino, Ocupação da USP, Cinema... Qualquer coisa que você decide comentar sai com um brilho especial e principalmente, sempre com um angulo diferente de observação.
ResponderExcluirMuitas madrugadas para você! E muitas horas de sono reparador depois.
Beijo
Miranda
Luana,
ResponderExcluirestou saciado.
O Felipe ganhou na Mega Sena, fala isso prá ele.
Um beijo, menina
Ai Lulu, adorei o paralelo.
ResponderExcluirEu tb adoro escrever e cozinhar, embora em ambos os casos acredito estar muito longe de fazê-los como vc.
Na cozinha, minha especialidade são os risottos, e gosto mesmo das coisas simples, como um bom pão italiano com azeite. Acompanhado de um bom vinho, sou a mulher mais feliz do mundo. Como diz meu marido, precisamos de pouco pra ser felizes.
Bjs e obrigada por brindar-nos com mais um texto lindo e verdadeiro.
Tecer elogios dirá algo sobre seu texto?
ResponderExcluirAcho que desta vez o silêncio dirá mais.
Ainda encantada pelas palavras e pela escritora.
Abraço forte!
Janaína.
AH... Janaína, Janaína...
ResponderExcluir:-)
( suspiro)
:)
Marcos!
que legal vc por aqui! a rotina, ah a rotina... estar de férias e poder ter controle sobre os próprios horários... Um beijão, querido.
Equilibrista,
demorou! :) vc que nunca mais aparece, num pára de trabalhar... vamso combinar, sério.
Ow, Vivien, brigada.
Miranda,
beijo procê também. brigada, viu? sono reparador é uma ótima mesmo.
Valter,
hihihihi!! ontem o fiipe reclamou de sei lá o quê comigo e eu disse: olha, o Valter mandou dizer que vc ganhou na mega sena, viu? hihihi!! ele: eu li!
:-)Adorei essa!
Renata querida,
Que nada, eu num cozinho nem escrevo tão bem não. Mas, ah.. pão, azeite, vinho, o homem que a gente ama... num precisa de mais nada mesmo.
num é?
Eu estava lendo por aí, acabei cruzando com o Drummond e lembrei desta sua postagem e resolvi colocar esses versinhos do poeta para você sorrir um pouco mais: "Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã.".
ResponderExcluirUlisses,
ResponderExcluiracordei sensível à beça, li seu presente e sorri e me emocionei. Obrigada.
Vamos dançar?
beijinho,
l.