segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Ratatouille e o omelete de amoras

O Rei e a Omelete

Era uma vez um rei que tinha todos os poderes e tesouros da Terra, mas apesar disso não se sentia feliz e a cada ano ficava mais melancólico.

Um dia ele chamou o seu cozinheiro preferido e disse: "Você tem cozinhado muito bem para mim e tem trazido para a minha mesa as melhores iguarias, de modo que eu lhe sou agradecido. Agora, porém, quero que você me dê uma última prova de sua arte. Você deve me preparar uma omelete de amoras iguais àquelas que eu comi há cinqüenta anos, na infância.

Naquele tempo, meu pai tinha perdido a guerra contra o reino vizinho e nós precisamos fugir: viajamos dia e noite através da floresta, onde afinal acabamos nos perdendo.

Estávamos famintos e cansadíssimos, quando chegamos a uma cabana onde morava uma velhinha que nos acolheu generosamente.

Ela preparou para nós uma omelete de amoras, quando a comi, fiquei maravilhado: a omelete era deliciosa e me trouxe novas esperanças ao coração.

Na época eu era criança, não dei importância à coisa. Mais tarde, já no trono, vasculhei todo o reino, porém não foi possível localizá-la.

Agora quero que você me atenda esse desejo: faça uma omelete de amoras igual à dela. Se você conseguir, eu lhe darei ouro e o designarei meu herdeiro, meu sucessor no trono. Se você não conseguir, entretanto, mandarei matá-lo".

Então, o cozinheiro falou: “Senhor, pode chamar imediatamente o carrasco”.

É claro que eu conheço todo o segredo da preparação de uma omelete de amoras, sei empregar todos os temperos.

Conheço as palavras mágicas que devem ser pronunciadas enquanto os ovos são batidos e a melhor técnica para batê-los. Mas não me impedirá de ser executado, porque a minha omelete jamais será igual à da velhinha. “Ela não terá o sabor picante do perigo, a emoção da fuga, não será comida com o sentido alerta do perseguido, não terá a doçura inesperada da hospitalidade calorosa e do ansiado repouso, enfim conseguido. Não terá o sabor do presente estranho e do futuro incerto". Assim falou o cozinheiro.

O Rei ficou calado, durante algum tempo.

Não muito mais tarde, consta que lhe deu muitos presentes, tornou-o um homem rico e despediu-o do serviço real.”

(adaptado de : Walter Benjamin, em Imagens do Pensamento, In: Walter Benjamin, obras escolhidas volume II, "Rua de mão única"; São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 219 )


Fui ver ratatouille da Disney, um dos filmes mais bacanas em cartaz.

Esqueçamos a baboseira de anyone can cook, do ratinho que deve vencer todos os preconceitos em relação a sua espécie e origem, que deve acreditar em si mesmo, e blablabla... esqueçamos o de sempre, a moral disney americana, onde há espaços para todos, e o mundo é democrático e belo e tal, e fiquemos com o que há de grande no filme, que em muito supera as lições do politicamente correto.

É um filme que homenageia o comer. O desfrutar e a apreciação dos sabores. O pobre ratinho que quer ser chef e para isso deve superar suas origens e condição roedora não somente tem um olfato excelente, mas também sabe distinguir gostos. Fecha os olhos, experimenta um queijo amarelo e ouve os sons que aquele sabor suscita. Experimenta uma noz, e ouve sons diferentes. Experimenta os dois juntos, e cria uma sinfonia. Ele presta atrenção na comida, aprecia os sabores, e não é necessário mais que isso para ser um grande cozinheiro. Basta respeitar cada ingrediente, tirar de cada um o que há de melhor.

O pobre ratinho não pode viver de lixo, de restos de comida que servem somente para encher a barriga, não pode viver de roubo. O ratinho sabe das coisas, arrisca sua vida e expõe a colônia inteira por alguns pistilos de açafrão. Ele tem que ser um chef.

Sozinho, vai parar em Paris, a meca dos que gostam desse negócio de comer e cozinhar. Vai parar bem ali na cozinha de seu ídolo, um cozinheiro que popularizou a idéia que lhe encheu de esperanças, de que qualquer um pode cozinhar, mas que, entretanto, morreu de desgosto ao perder duas estrelas de seu restaurante. É fato que chefs franceses morrem por causa disso, se suicidam, nunca mais se recuperam, esse tipo de coisa, ao perder estrelas no Michelin. O implacável crítico, Anton Ego ( e alguém já viu nome mais excelente? ) retirou duas estrelas da casa, colocando-a no seu lugar de direito: lugar turístico para estrangeiros deslumbrados. É o começo do fim, um golpe duro demais.

Pois bem, o tal do ratinho ( sim, esqueci o nome do bicho, sorry, ou melhor, pardon) , chega lá e graças a mil artimanhas e peripércias possíveis somente na ficção ( e quem é que liga? ) torna-se o chef da casa. E mais, passa a fazer aquilo que até então ninguém ousara: altera as receitas consagradas do antigo chef. Muda, incrementa, inventa. Todos se horrorizam, mas o povo ( tá, povo não, coloquemos comensais) os comensais gostam e se acabam. Querem mais novidades. O restaurante volta a ser popular, volta a ganhar boas críticas, volta para o centro das conversas, há filas na porta, a mídia enlouquece.

Falta o parecer Dele, do Crítico: Anton Ego.

Ele, que já havia dado a sentença final, que já condenara o restaurante à galeria das estrelas menores, a ponto turístico e nada mais, a reles três estrelas. Anton Ego não se conforma de estarem refutando suas palavras finais. Como assim?A sentença final fora dada. Anton Ego volta ao restaurante e avisa, para toda a imprensa e o mundo, que estará lá no dia seguinte, para dar uma nova chance ao estabelecimento.

Não há nada mais tenso que a visita de um crítico a nossa casa. Ali, a visita toma proporções inimagináveis. Anton Ego é tudo o que pode haver de mais horroroso em um crítico. Ele é implacável, mordaz, feroz - tem a vida e a morte dos chefs e de suas casas nas mãos - e diverte-se com isso. Anton Ego vai lá preparado para o pior. E diverte-se com isso. Ele é a estrela, ele é o artista maior, ele é deus.

Estão todos nervosos. O maitrê vai atendê-lo, o pobre treme. E o crítico, ao ser perguntado sobre o quê deseja, responde:

- Uma perspectiva.

- Como assim?

- Eu quero uma perspectiva. Que vinho combina com isso?

O maitrê treme, sua frio, não sabe como traduzir uma perspectiva em pratos, está perdido. O crítico é , então, um pouco mais condescendente:

- Eu quero que o chef surpreenda-me. Supreenda-me. E quero o vinho tal ( algum vinho desse excelentes, que eu não lembro qual era, aposto que a Birgitte lembra!).

Não há diálogo melhor. O vinho é servido, na cozinha, o caos absoluto , não vou contar para não tirar a graça da surpresa para quem ainda não viu o filme, mas de qualquer maneira, dá tudo errado, como não poderia deixar de ser. No entanto, o ratinho ainda reina, ainda que só e desacreditado. The show must go on.

O que servir a Anton Ego?

E, então, vem a sacada de gênio, o ratinho resolve servir uma ratatouille. Um prato simples, camponês, desses que se come em casa, trivial - barato, até.

Nada de escargots ao molho de besouros raros da índia e emulsão de camarões cantoneses; nada de espuma de vieras embaladas numa sopa fria de salmão selvagem com um leve toque de tamarindo; nada de aspargos dourados em óleo de abacate cobertos por foie gras e lascas de atum, nada de acrobacias. Uma boa e velha ratatouille, que consiste basicamente de abobrinhas ( tipo italiana), berinjelas e tomate, com tomilho, levadas ao forno. As receitas variam, um pouco de cebola cai bem também, e se vc quiser ousar e colocar abóboras, fica uma delícia. Basta picar ( pedaços grandes, não é para virar uma papa) e colocar tudo no forno, regado com muito azeite de oliva, até que os vegetais amoleçam e quase queimem, galhos de tomilho são fundamentais, sal e pimenta do reino. Alguns alhos inteiros ficam bons também, pode fazer.

É isso que o ratinho faz, mudando um pouco a receita original. A antiga sous chef fica horrorizada, é o fim de tudo, como servir um prato simples assim a ele: Anton Ego? estão todos perdidos.

Cobre-se o recipiente com um molho de tomate espesso, fresco, feitos com os melhores tomates, escolhidos um a um pelo cheiro. Fatia-se as berinjelas e as abobrinhas em fatias finíssimas, rega-se o prato com azeite e tomilho, forno e voilá. Pronto o assado, monta-se o prato com arte e beleza, e então a ratatouille chega à mesa de Ego.

Agora, quem não leu ainda, ou não entendeu a historinha do omelete de amora que introduz o post deve lê-la novamente. O crítico mal humorado, azedo, pálido e infeliz, prova a ratatouille que lhe é servida. E fecha os olhos. E lembra-se da sua infância, de sua mãe lhe servindo uma ratatouille. O crítico chora. Um momento proustiano, disse um outro amigo meu.

E Anton Ego volta para casa, e escreve a crítica mais elogiosa de sua carreira, entrega-se à arte do pequeno camundongo, diminui em estatura, e louva a cozinha daquela casa e daquele rato.

Depois, a agência sanitária acaba por fechar o estabelecimento, e não tem importância, todos ficam muito felizes numa nova casa, um simples bistrô, sem estrela alguma e muita comida boa, com espaço para homens e ratos.

Porque os sabores mais importantes são os mais simples, são aqueles relacionados à vida e à experiência de se estar vivo, são aqueles que nos trazem memórias e condensam experiências, emoções.

O sabor da omelete de amoras, sempre buscado, sempre procurado e que, sempre, vale a pena ser vivido e experenciado.






12 comentários:

  1. Lulu
    estou aqui preparando uma prova e me lembrei de vc...(lá vem!) Quando abro o blog encontro essa maravilha de crítica, da maravilha que é essa síntese chamada Ratattoiuille! Então copio para vc um trecho do que li: para nós, para vós...

    "Verdadeiro materialista histórico não é aquele que segue ao longo do tempo linear infinito uma vã miragem de progresso contínuo, mas aquele que, a cada instante, é capaz de parar o tempo, pois conserva a lembrança de que a pátria originária do homem é o prazer." Giorgio Agamben (Infância e História, p.128)

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  2. Não achei tão politicamente correto assim não. Apesar de ter todo o formato do “politicamente correto”, uma das “lições” que o filme passa é a da premiação do egoísmo. O Remy (esse é o nome do ratinho) queria mesmo era cozinhar, certo? Entretanto, quando ele está a fazer isso fica revoltado pela falta de reconhecimento. Oras, ele não queria era viver de fazer Arte com os alimentos? Por que diabos tinha de quase acabar com a vida do pobre Linguini (o rapaz principal do filme que tinha permitido que o ratinho cozinhasse) por causa do reconhecimento dos outros? Achei que o gostoso era poder continuar cozinhando do modo como ele gostava, não? Mas, vale dizer, o texto introdutório da sua postagem caiu muito bem. Pena que eu não o conheci antes de ver o filme.

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  3. Oi, Lulu... Fuçando um pouco pelo seu blog, pegando uma coisa aqui, outra ali... Bem legal... E Ratatouille é mesmo demais, principalmente pela conjunção de registros, que encanta crianças e adultos... E o final, com o Ego, na voz do magistral sir Peter O'Toole, dando uma lição de crítica de arte... Muito bom... Vmos trocando figurinhas... Bjo...

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  4. Lulu, vou asistir ao filme por causa de sua critica, não tinha me animado não, mas se for metade do que vc diz...

    Beijos,
    miranda

    P.S obrigado por suas belas palavras.

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  5. As comidas mais simples elaboradas com os melhores ingredientes são imbatíveis . Como melhores ingredientes entenda-se não necessariamente os mais caros, mas os mais frescos e da estação. São conhecimentos simples e quase óbvios adquiridos ao longo de séculos de experimentações e tradição. É delicioso perceber no crítico mais impiedoso de Paris (dublado por Sir Peter O´Toole) o seu quase orgasmo degustando um prato ordinário!
    Ontem, Lulu e eu trocamos um jantar "caras e bocas" no Spot por um jantar bem mais autêntico no Le Vin e o assunto durante um bom tempo foi cozinha, claro !

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  6. Ontem cheguei em casa, liguei a TV e estava passando Roma, de Fellini, no canal Cine Cult. Assisti felicíssimo pela enésima vez esse filme que nada mais é que uma grande homenagem à cidade que eu mais adoro vista aos olhos do diretor que eu também mais adoro! Além dos estereótipos tipicamente romanos tem no seu momento de total delirio um impagável desfile de trajes eclesiásticos!

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  7. que legal postar comentários anônimos

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  8. que legal que possivelmente ninguem ira ler isso tamném hahaha

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  9. essa deve ser a magia da internet, poder gritar para todos e não ser ouvido por ninguem....

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  10. Oi Anônimo,
    não só euleio os comentários, como também fico contentequando alguém comenta. a magia acontece quando, justamente, a gente é ouvido!
    lulu

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  11. Nosaaaaa... vc tá vivo ainda kkkkkk

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