sábado, 17 de fevereiro de 2007

Esplêndida

Fiz esse texto a pedido do meu amigo Dionísio, que dirige e toca, junto à Companhia Satélite, o projeto Os dois lados da Rua Augusta, contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao teatro para a Cidade de São Paulo.
Um texto sobre a Rua Augusta, para ser publicado na quarta edição do jornal O satélite, parte do projeto.
O texto saiu, médio, o jornal saiu, bacana, mas meu texto, além de médio, saiu sem o final, então o publico aqui, inteiro, já que no jornal tem o endereço do blog. Se algum desavisado vier parar aqui, fica sabendo que o último parágrafo foi cortado, e o conto inteiro é esse. Fico cheia de vergonha, porque não é um super texto, mas gosto do título, Esplêndida, que é também o nome da heroína. Como no carnaval ninguém lê blog mesmo... aí vai:

Esplêndida

Esplêndida de Albuquerque Bulhões Magalhães sempre soube o que queria quando fizesse dezoito anos e, desde os nove, se preparara para aquela viagem escondida. Economizava cada centavo, ensaiava os atos, decorava o itinerário, repetia com cuidado cada passo e cada fala e havia sonhado e imaginado tudo tantas vezes que era como se houvesse já vivido aquilo. De cor e salteado, uma coreografia internalizada a tal ponto dela não precisar mais nem pensar, como uma fala decorada por um ator, que depois de um tempo deixa de ser uma fala decorada e passa a ser uma fala que flui e nem se sabe mais de onde.

A Rua Augusta era parte dela, e ela era parte da Rua Augusta. Desde pequena havia sido assim, quando, aos nove anos, ouvira pela primeira vez sua primeira canção do Roberto. E agora fora seu último aniversário, ganhara maioridade e havia chegado o momento de, finalmente, se conhecerem. Ela sabia que seria bíblico e sublime, e mal contendo o prazer antecipado, se preparava, com todo cuidado.

O dinheiro da passagem de ônibus, tão cuidadosamente guardado em baixo da cama, sem que ninguém percebesse os centavos que sempre faltavam dos trocos, do dinheiro contado para o leite e para a carne. O dinheiro exato de uma passagem de ida: Pirapora, São Paulo. Mais o dinheiro do metrô e ela decorara as baldeações, conhecia tão bem o caminho a ser feito que, se ficasse cega, suas pernas andariam sozinhas. Nem queria saber da Avenida Paulista, saltaria na Consolação e iria direto a sua Rua Augusta. O carro a estaria esperando lá, o Maverick alugado por uma hora, era suficiente, o moço pensou que era para um comercial, ela soube explicar tudo direitinho, daria uma boa atriz, a menina.

Colocou em sua malinha dura e antiga o vestido cuidadosamente passado, igual ao ela vira no filme, a saia rodada com uma combinação de renda quase aparecendo, um cinto justo que marcava a cintura fina, mais fina que a da Marta Rocha, embora seu quadril fosse maior ainda. Luvas, tiara, sapatinhos combinando, em ritmo de aventura. Batom, rímel e cílios postiços, porque era assim que se usava na época.

Saiu de casa, sem contar para ninguém para onde iria, nunca nem tinha atravessado a rua do fim da sua cidade, e não tinha também dinheiro para a volta, mas nada daquilo importava. Sua garganta sufocava quase, de alegria e antecipação. Não precisava da autorização nem da ciência de ninguém, iria sozinha e era agora.

Saltou do ônibus, entrou no banheiro da rodoviária, um real, ela já sabia, e se vestiu cuidadosamente. Estava idêntica à moça do filme. A mala velha ficou ali mesmo, assim como suas roupas antigas. As pessoas a olhavam com simpatia, davam risinhos, ela retribuía com seu sorriso mais gentil. Tirou as luvas para pegar em sua carteira cigarrete o troco exato para o bilhete do metrô, fez as baldeações sem nem precisar olhar o mapa, desceu na Consolação e lá estava o carro a esperando.

Tomou a direção e aquela menina nova desceu a Rua Augusta a cento e vinte por hora, com carro sem farol e sem buzina, envenenado, envenenada, acenando para o Alfredo e para o Johnny, parte da gangue, sem medo. Aquela menina nova parou na contramão, e foi feliz.

12 comentários:

  1. Hahahah, Lulu, parece eu! Se não quisesse que ninguém lesse, não teria publicado! E ninguém lê mesmo blog no carnaval, mas os posts ficam aqui! Hahahah. Boba. Esplêndida! Linda! k

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  2. tem gente que gosta de ler (blogs inclusive) e não gosta de carnaval
    :)

    eu gosto de amigos, no carnaval e fora dele, aqui inclusive!

    legal o texto, porque diabos cortaram o último parágrafo, pô!!!

    e blog existe pra existe isso também...

    bjinhos

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  3. ai, que vivam os amigos!!!! :)
    beijinhos para vocês.
    Lu.

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  4. Luana,

    Gostei do texto. Só acho que a minha pouca idade e, por conseguinte, pouca experiência de vida, não me permitiu captar de que filme você está falando...

    Um beijo.

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  5. Mr Magoo,
    também, devido a minha pouquíssima idade, e portanto, parca experiência nessa vida, não tenho a menor idéia sobre qual foi o filme que a Esplêndida viu.
    Quem souber, pode contar.
    beijinho,
    Lu.

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  6. Cara Lulu, saiba que vc tem leitores silenciosos, que lêem seu blog todos os dias, e os arquivos e mostra para a família e ri por dentro em saber que há mais mulheres no mundo que gostam de cozinhar e dar aulas e também de ter um blog.

    Pessoas que só no silêncio de uma cidade que em carnaval todos vão para outros lugares e deixam o clima assim, mais limpo, mais em paz, se encorajam de deixar um comentário só para aumentar o bloco dos que: "não gostam de carnaval e aproveitam para ler e cuidar de si".

    Gosto de contos com finais sem final...

    Abraço!

    PS: Depois que li tuas receitas fiquei sem coragem de dizer que sei cozinhar...rs

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  7. Janaina,
    puxa...seu comentário me deixou com uma contenteza que acho que vai durar até o final do carnaval!!
    Muito obrigada!!
    Luana.

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  8. Estou de volta! (Na Depressão Escaldante, não chego perto da rede mundial)

    Que conto gostoso! Aliás, ler seu blog é sempre uma experiência prazerosa.

    (eu pensei num epílogo super trágico para a aventura da Esplêndida... hehehe)

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  9. Equilibrista!! Que saudade!!
    E no carnaval apareceu a Janaina por aqui que é super legal, você precisa ver!!
    E... o sited meter pifou.. cê viu?
    beijocas,
    Lulu.

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  10. Ah, eu achei que era culpa de algum firewall para não aparecer nada no contador! Vou averiguar!

    E o sofá está cada vez mais povoado!! Hehehe!

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  11. pois é...
    e vc foi lá para a depressão escaldante e mil coisas aconteceram... hehehe....

    escuta, quero saber seu epílogo!! posta lá no equilibrista e a gente fica trocando figurinha, que tal???

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