terça-feira, 1 de maio de 2007

"A comilança"




"A comilança", de Marco Ferreri, é daqueles filmes que fazem você sair do cinema meio tonta, meio mexida, meio rindo e meio séria, conseguindo falar apenas: "putaquepariu... que filme. "

Aí você dorme, o tempo passa e o filme persiste, reverbera na cabeça, as pequenas cenas e gestos, os grandes atores, a fotografia, tudo, fica ali, num cantinho seu, impresso, para sempre. Porque "A comilança" é um filme dos Grandes, daqueles que te transformam e até mesmo mudam paradigmas. Depois da Comilança qualquer filme aí pseudo-modernoso, seja sobre sexo desenfreado, sobre drogas, sobre compulsões, prazeres, comida, escatologia, suicídio, qualquer um, fica no chinelo. Trata-se de um dos filmes mais belos e fortes que eu já vi.
Um filme sobre a vida, do ponto de vista de quatro homens.


Um filme sobre a vida, falei, e sobre a morte também, sem metafísica alguma, e aí está uma das grandezas do filme. São quatro homens belos e inteiros (? ou não...), bem sucedidos, vidas construídas. O Marcello lindo e elegante como nunca, todos no auge de suas carreiras. O nome das personagens é o mesmo dos atores, numa elegante brincadeira e homenagem. E o que pode-se esperar de um filme que reúne Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Ugo Tognazi e Philipe Noiret? A gente senta, fica bem quietinha e deixa que eles conduzam o espetáculo.

O filme inicia-se no lado de fora, mostrando um pouco da vida de cada um, enquanto preparam-se para uma viagem. O cozinheiro Hugo despede-se de seu restaurante, levando consigo potes e potes de compotas e seu jogo de facas, guardado num estojo impressionante, que leva consigo desde os quinze anos: "meu pai vendeu duas vacas para comprá-lo". Michel, produtor de tevê, despede-se de sua filha, deixa-lhe as chaves do apartamento, num tom cotidiano, banal. Está tudo acertado para a viagem que fará, um mês de programação já estabelecida. Marcello, o comandante, pousa seu avião e, depois de ter se ocupado com o desembarque de alguns queijos que trouxera consigo, coloca-se no corredor da máquina vazia e olha-a como se dela se despedisse. Phillipe, o juiz, despede-se de sua ama de leite, seios enormes, que lhe acompanha desde a primeira infância, lhe acorda, lhe dá de comer, e lhe bate uma punheta.

Homens inteiros, bem de vida, bem sucedidos, preparando-se para uma viagem, um refúgio, um desaparecimento. Deixam as coisas em ordem, abastecem-se de quantidades impressionantes de produtos de limpeza, carnes, vegetais, queijos, frutas, compotas, legumes, vinhos, licores, champanhes.

Juntam-se numa mansão perdida em meio a cidade, e dali não sairão mais. O portão da mansão abre-se para um jardim meio decadente, repleto de folhas secas, enorme, e ali estarão e ali se passará o filme, entre o jardim e a casa, até o fim. Está preparada a fronteira, e as conversas são todas sobre o presente, sobre a comida, a carne, o sono, o sexo, a flatulência, a recuperação, a merda. Toda a vida do lado de fora fica do lado de fora, não há lamentos sobre o passado, conversas sobre o vazio da existência, nada disso. São homens e uma mulher (que junta-se ao grupo) que comem, bebem e transam, até não poder mais, literalmente. Ao mesmo tempo uma exaltação da vida, e dos prazeres da vida e destruição dela mesma e mesmo dos prazeres, pois come-se sem fome, transa-se no vazio. A casa transborda de merda.

Ao mesmo tempo, não há moral alguma, tudo é comunitário, divide-se a mulher, a cama, os pratos, o pum. A morte sempre ali, eminente, e na procura da morte, vive-se todos os excessos possíveis, com elegância, arte, fantasias, escatologias, alegria, risadas, loucuras.

Não há explicações, histórias pregressas, flash backs. Há o olhar angustiado de Marcello, os gestos, as ações de todos.
As ações giram todas em torno da comida ( há todo um desfile de animais que chegam à mansão: carneiros, gansos, perus, bois, porcos, veados....), e logo também do sexo. O movimento da câmera sobre os animais nos remete às pituras de naturezas mortas do século XVI, e a composição dos pratos que movem os banquetes ininterruptos são suntuosas e barrocas.

O banquete se move. O primeiro jantar anuncia ao que se veio : começam com ostras e mais ostras, passa-se ao porco, do porco ao galeto, do galeto ao perdiz e assim por diante. Bebe-se bem, come-se por horas, uma culinária altamente elaborada e sofisticada. Todos bem vestidos, elegantes `a mesa, num ciclo sem fim, de pratos e mais pratos e mais pratos.

Marcello já no segundo dia fala:
-Ok, tudo bem estarmos aqui, ok, tudo bem... mas eu preciso transar!

Decide-se então por chamar prostituas para o banquete.
Durante o dia, acontece uma visita aos jardins da casa: uma professora leva seus alunos para visitar o loureiro de Boileau, onde esse poeta francês que viveu no século XVI e morreu no início do XVII escrevera suas poesias. Logo os alunos espalham-se pela casa comem brioches com chocolate quente, visitam a cozinha, a garagem, o jardim. A professora, uma mulher linda e gorda, que delicia-se com o chocolate quente e os rins que lhe são servidos, é convidada para o jantar.

Chega a noite e com ela as mulheres. Três prostitutas e a professora, que não se constrange, nem pelo excesso de comidas nem pelo sexo que que se faz pela casa inteira. Pelo contrário, ela entra na história e entrega-se ela também aos prazeres da carne.
Logo aparece de calcinha e sutiã, junto às outras mulheres, peladas também. Comida e corpos se misturam, e não se pára de comer, nunca.
Assim, à comilança junta-se o sexo, e está montado o jogo.


As carnes da maravilhosa Andrea Ferréol misturam-se às massas, essa mulher gorda e linda, toda proporcionada, a pele lisa e alva, aparece nua, andando pela casa o tempo inteiro, desejosa e desejante. As prostituas acabam por cansar-se e sentirem-se enojadas e mesmo entediadas diante de tanta comilança, diante do projeto louco, que não compreendem. Andrea fica, e cuida dos homens, se dá aos homens, oferece suas carnes, torna-se cúmplice do projeto, que compreende, em silêncio, e que acompanha até o fim.


Que cada um interprete o filme como queira. Lendo, ontem, vi críticos comentarem que trata-se de uma crítica ao capitalismo e seu consumo desenfreado e vazio. Que o filme ilustra perfeitamente a junção de Thânatos e Eros, tal como colocada por Freud. Que o filme tematiza o vazio da contemporaneidade, que é sobre a feminilidade, sobre a decadência, enfim....


O que fica, para mim, é o grande prazer e ter visto algo tão bom. Um filme lindo, inteligente, alegre e trágico ( e desculpem-me pela profusão de adjetivos). Um filme sobre o que é estar vivo, sobre a procura de sexo, comida, bebida, cultura, amizade, amor e morte, os sentidos e a falta de sentidos.
Sobre o vazio, o fim.




A Comilança estará em cartaz em SP no cine-clube do Belas Artes, até o dia 03 de maio, sempre as 19:00 horas. Meu, se vc for ou estiver em SP, não perca.

8 comentários:

  1. Fiquei com vontade de assistir, tô procurando pra baixar da net, pq aqui em Jataí eu duvido que tenha em locadora e muito menos no cinema...

    Abraço.

    Janaína.

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  2. Lulu, lindona, desculpe a falta de notícias. Tou com uma gripe danada, que não ata nem desata, mas maltrata. Mas vamos marcar novamente?!

    Beijos.

    Ah, sim. Comilança é isso mesmo e mais um pouco, acho. Não sei se a crítica ao capitalismo procede, mas a celebração da vida, da morte, essa sim tá lá, o tempo inteiro. Humanizar-se é o que fica. Como diz o Vonnegut: let´s go to fart around!

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  3. Eu achei pra baixar, mas como a minha net é via rádio e o arquivo tá com poucas fontes vai demorar...daqui uns meses te digo se gostei do filme...hehe

    Abraço!

    Janaína

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  4. Ih Jana,
    vem prá cá prá sumpaulo e a gente vê o filme junta!! :)
    depoi ssai prá comer!! hihihi...

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  5. Eu queria ir no Abralic aí em SP em julho... mas é quase na mesma data do GEL e eu já me increvi e vou apresnetar trabalho, sorte tua, já pensou eu batendo na tua porta?

    Credo, coitada da Lulu...hehe

    Vem pra cá vc, aqui não tem cinema bom nem loja e tal mas tem fazenda e muitas cachoeiras!

    Se bem que pelo fuzuê todo do acampamento acho que vc não deve gostar muito de mato...hehe

    Abraço.

    Janaína

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  6. Clap! Clap! Clap!
    Brava!
    Bra´vissima Lulu!
    Não tenho nada a acrescentar.
    Brava!

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  7. Durante um jantar com amigos gasto boa parte do tempo falando sobre comida. Com a Luana não é diferente. No nosso último encontro no Arabia já deixamos pré-marcado um próximo jantar num restaurante japonês e descemos o cacete em pessoas sem noção que fazem comentários nonsense sobre gastronomia[bico]! Passado o desabafo iniciamos um papo sobre bons filmes que tratam do assunto e o primeiro que me veio à mente foi "A Comilança" do Marco Ferreri. Não é que a Luana tinha acabado de escrever sobre esse filme no seu blog ?!
    Amanhã vou testar uma nova receita e pra isso preciso estar bem disposto logo cedo, no horario das compras...

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  8. João Paulo, meu querido!!

    que delícia te ver por aqui!! Sempre com saudades de vc, meu amigo de bom gosto irretocável. ;-)

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