"A comilança", de Marco Ferreri, é daqueles filmes que fazem você sair do cinema meio tonta, meio mexida, meio rindo e meio séria, conseguindo falar apenas: "putaquepariu... que filme. "
Aí você dorme, o tempo passa e o filme persiste, reverbera na cabeça, as pequenas cenas e gestos, os grandes atores, a fotografia, tudo, fica ali, num cantinho seu, impresso, para sempre. Porque "A comilança" é um filme dos Grandes, daqueles que te transformam e até mesmo mudam paradigmas. Depois da Comilança qualquer filme aí pseudo-modernoso, seja sobre sexo desenfreado, sobre drogas, sobre compulsões, prazeres, comida, escatologia, suicídio, qualquer um, fica no chinelo. Trata-se de um dos filmes mais belos e fortes que eu já vi.
Um filme sobre a vida, do ponto de vista de quatro homens.
Um filme sobre a vida, falei, e sobre a morte também, sem metafísica alguma, e aí está uma das grandezas do filme. São quatro homens belos e inteiros (? ou não...), bem sucedidos, vidas construídas. O Marcello lindo e elegante como nunca, todos no auge de suas carreiras. O nome das personagens é o mesmo dos atores, numa elegante brincadeira e homenagem. E o que pode-se esperar de um filme que reúne Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Ugo Tognazi e Philipe Noiret? A gente senta, fica bem quietinha e deixa que eles conduzam o espetáculo.
O filme inicia-se no lado de fora, mostrando um pouco da vida de cada um, enquanto preparam-se para uma viagem. O cozinheiro Hugo despede-se de seu restaurante, levando consigo potes e potes de compotas e seu jogo de facas, guardado num estojo impressionante, que leva consigo desde os quinze anos: "meu pai vendeu duas vacas para comprá-lo". Michel, produtor de tevê, despede-se de sua filha, deixa-lhe as chaves do apartamento, num tom cotidiano, banal. Está tudo acertado para a viagem que fará, um mês de programação já estabelecida. Marcello, o comandante, pousa seu avião e, depois de ter se ocupado com o desembarque de alguns queijos que trouxera consigo, coloca-se no corredor da máquina vazia e olha-a como se dela se despedisse. Phillipe, o juiz, despede-se de sua ama de leite, seios enormes, que lhe acompanha desde a primeira infância, lhe acorda, lhe dá de comer, e lhe bate uma punheta.
Homens inteiros, bem de vida, bem sucedidos, preparando-se para uma viagem, um refúgio, um desaparecimento. Deixam as coisas em ordem, abastecem-se de quantidades impressionantes de produtos de limpeza, carnes, vegetais, queijos, frutas, compotas, legumes, vinhos, licores, champanhes.
Juntam-se numa mansão perdida em meio a cidade, e dali não sairão mais. O portão da mansão abre-se para um jardim meio decadente, repleto de folhas secas, enorme, e ali estarão e ali se passará o filme, entre o jardim e a casa, até o fim. Está preparada a fronteira, e as conversas são todas sobre o presente, sobre a comida, a carne, o sono, o sexo, a flatulência, a recuperação, a merda. Toda a vida do lado de fora fica do lado de fora, não há lamentos sobre o passado, conversas sobre o vazio da existência, nada disso. São homens e uma mulher (que junta-se ao grupo) que comem, bebem e transam, até não poder mais, literalmente. Ao mesmo tempo uma exaltação da vida, e dos prazeres da vida e destruição dela mesma e mesmo dos prazeres, pois come-se sem fome, transa-se no vazio. A casa transborda de merda.
Ao mesmo tempo, não há moral alguma, tudo é comunitário, divide-se a mulher, a cama, os pratos, o pum. A morte sempre ali, eminente, e na procura da morte, vive-se todos os excessos possíveis, com elegância, arte, fantasias, escatologias, alegria, risadas, loucuras.
Não há explicações, histórias pregressas, flash backs. Há o olhar angustiado de Marcello, os gestos, as ações de todos.
As ações giram todas em torno da comida ( há todo um desfile de animais que chegam à mansão: carneiros, gansos, perus, bois, porcos, veados....), e logo também do sexo. O movimento da câmera sobre os animais nos remete às pituras de naturezas mortas do século XVI, e a composição dos pratos que movem os banquetes ininterruptos são suntuosas e barrocas.
O banquete se move. O primeiro jantar anuncia ao que se veio : começam com ostras e mais ostras, passa-se ao porco, do porco ao galeto, do galeto ao perdiz e assim por diante. Bebe-se bem, come-se por horas, uma culinária altamente elaborada e sofisticada. Todos bem vestidos, elegantes `a mesa, num ciclo sem fim, de pratos e mais pratos e mais pratos.
Marcello já no segundo dia fala:
-Ok, tudo bem estarmos aqui, ok, tudo bem... mas eu preciso transar!
Decide-se então por chamar prostituas para o banquete.
Durante o dia, acontece uma visita aos jardins da casa: uma professora leva seus alunos para visitar o loureiro de Boileau, onde esse poeta francês que viveu no século XVI e morreu no início do XVII escrevera suas poesias. Logo os alunos espalham-se pela casa comem brioches com chocolate quente, visitam a cozinha, a garagem, o jardim. A professora, uma mulher linda e gorda, que delicia-se com o chocolate quente e os rins que lhe são servidos, é convidada para o jantar.
Chega a noite e com ela as mulheres. Três prostitutas e a professora, que não se constrange, nem pelo excesso de comidas nem pelo sexo que que se faz pela casa inteira. Pelo contrário, ela entra na história e entrega-se ela também aos prazeres da carne.
Logo aparece de calcinha e sutiã, junto às outras mulheres, peladas também. Comida e corpos se misturam, e não se pára de comer, nunca.
Assim, à comilança junta-se o sexo, e está montado o jogo.
As carnes da maravilhosa Andrea Ferréol misturam-se às massas, essa mulher gorda e linda, toda proporcionada, a pele lisa e alva, aparece nua, andando pela casa o tempo inteiro, desejosa e desejante. As prostituas acabam por cansar-se e sentirem-se enojadas e mesmo entediadas diante de tanta comilança, diante do projeto louco, que não compreendem. Andrea fica, e cuida dos homens, se dá aos homens, oferece suas carnes, torna-se cúmplice do projeto, que compreende, em silêncio, e que acompanha até o fim.
Que cada um interprete o filme como queira. Lendo, ontem, vi críticos comentarem que trata-se de uma crítica ao capitalismo e seu consumo desenfreado e vazio. Que o filme ilustra perfeitamente a junção de Thânatos e Eros, tal como colocada por Freud. Que o filme tematiza o vazio da contemporaneidade, que é sobre a feminilidade, sobre a decadência, enfim....
O que fica, para mim, é o grande prazer e ter visto algo tão bom. Um filme lindo, inteligente, alegre e trágico ( e desculpem-me pela profusão de adjetivos). Um filme sobre o que é estar vivo, sobre a procura de sexo, comida, bebida, cultura, amizade, amor e morte, os sentidos e a falta de sentidos.
Sobre o vazio, o fim.
A Comilança estará em cartaz em SP no cine-clube do Belas Artes, até o dia 03 de maio, sempre as 19:00 horas. Meu, se vc for ou estiver em SP, não perca.
Aí você dorme, o tempo passa e o filme persiste, reverbera na cabeça, as pequenas cenas e gestos, os grandes atores, a fotografia, tudo, fica ali, num cantinho seu, impresso, para sempre. Porque "A comilança" é um filme dos Grandes, daqueles que te transformam e até mesmo mudam paradigmas. Depois da Comilança qualquer filme aí pseudo-modernoso, seja sobre sexo desenfreado, sobre drogas, sobre compulsões, prazeres, comida, escatologia, suicídio, qualquer um, fica no chinelo. Trata-se de um dos filmes mais belos e fortes que eu já vi.
Um filme sobre a vida, do ponto de vista de quatro homens.
Um filme sobre a vida, falei, e sobre a morte também, sem metafísica alguma, e aí está uma das grandezas do filme. São quatro homens belos e inteiros (? ou não...), bem sucedidos, vidas construídas. O Marcello lindo e elegante como nunca, todos no auge de suas carreiras. O nome das personagens é o mesmo dos atores, numa elegante brincadeira e homenagem. E o que pode-se esperar de um filme que reúne Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Ugo Tognazi e Philipe Noiret? A gente senta, fica bem quietinha e deixa que eles conduzam o espetáculo.
O filme inicia-se no lado de fora, mostrando um pouco da vida de cada um, enquanto preparam-se para uma viagem. O cozinheiro Hugo despede-se de seu restaurante, levando consigo potes e potes de compotas e seu jogo de facas, guardado num estojo impressionante, que leva consigo desde os quinze anos: "meu pai vendeu duas vacas para comprá-lo". Michel, produtor de tevê, despede-se de sua filha, deixa-lhe as chaves do apartamento, num tom cotidiano, banal. Está tudo acertado para a viagem que fará, um mês de programação já estabelecida. Marcello, o comandante, pousa seu avião e, depois de ter se ocupado com o desembarque de alguns queijos que trouxera consigo, coloca-se no corredor da máquina vazia e olha-a como se dela se despedisse. Phillipe, o juiz, despede-se de sua ama de leite, seios enormes, que lhe acompanha desde a primeira infância, lhe acorda, lhe dá de comer, e lhe bate uma punheta.
Homens inteiros, bem de vida, bem sucedidos, preparando-se para uma viagem, um refúgio, um desaparecimento. Deixam as coisas em ordem, abastecem-se de quantidades impressionantes de produtos de limpeza, carnes, vegetais, queijos, frutas, compotas, legumes, vinhos, licores, champanhes.
Juntam-se numa mansão perdida em meio a cidade, e dali não sairão mais. O portão da mansão abre-se para um jardim meio decadente, repleto de folhas secas, enorme, e ali estarão e ali se passará o filme, entre o jardim e a casa, até o fim. Está preparada a fronteira, e as conversas são todas sobre o presente, sobre a comida, a carne, o sono, o sexo, a flatulência, a recuperação, a merda. Toda a vida do lado de fora fica do lado de fora, não há lamentos sobre o passado, conversas sobre o vazio da existência, nada disso. São homens e uma mulher (que junta-se ao grupo) que comem, bebem e transam, até não poder mais, literalmente. Ao mesmo tempo uma exaltação da vida, e dos prazeres da vida e destruição dela mesma e mesmo dos prazeres, pois come-se sem fome, transa-se no vazio. A casa transborda de merda.
Ao mesmo tempo, não há moral alguma, tudo é comunitário, divide-se a mulher, a cama, os pratos, o pum. A morte sempre ali, eminente, e na procura da morte, vive-se todos os excessos possíveis, com elegância, arte, fantasias, escatologias, alegria, risadas, loucuras.
Não há explicações, histórias pregressas, flash backs. Há o olhar angustiado de Marcello, os gestos, as ações de todos.
As ações giram todas em torno da comida ( há todo um desfile de animais que chegam à mansão: carneiros, gansos, perus, bois, porcos, veados....), e logo também do sexo. O movimento da câmera sobre os animais nos remete às pituras de naturezas mortas do século XVI, e a composição dos pratos que movem os banquetes ininterruptos são suntuosas e barrocas.
O banquete se move. O primeiro jantar anuncia ao que se veio : começam com ostras e mais ostras, passa-se ao porco, do porco ao galeto, do galeto ao perdiz e assim por diante. Bebe-se bem, come-se por horas, uma culinária altamente elaborada e sofisticada. Todos bem vestidos, elegantes `a mesa, num ciclo sem fim, de pratos e mais pratos e mais pratos.
Marcello já no segundo dia fala:
-Ok, tudo bem estarmos aqui, ok, tudo bem... mas eu preciso transar!
Decide-se então por chamar prostituas para o banquete.
Durante o dia, acontece uma visita aos jardins da casa: uma professora leva seus alunos para visitar o loureiro de Boileau, onde esse poeta francês que viveu no século XVI e morreu no início do XVII escrevera suas poesias. Logo os alunos espalham-se pela casa comem brioches com chocolate quente, visitam a cozinha, a garagem, o jardim. A professora, uma mulher linda e gorda, que delicia-se com o chocolate quente e os rins que lhe são servidos, é convidada para o jantar.
Chega a noite e com ela as mulheres. Três prostitutas e a professora, que não se constrange, nem pelo excesso de comidas nem pelo sexo que que se faz pela casa inteira. Pelo contrário, ela entra na história e entrega-se ela também aos prazeres da carne.
Logo aparece de calcinha e sutiã, junto às outras mulheres, peladas também. Comida e corpos se misturam, e não se pára de comer, nunca.
Assim, à comilança junta-se o sexo, e está montado o jogo.
As carnes da maravilhosa Andrea Ferréol misturam-se às massas, essa mulher gorda e linda, toda proporcionada, a pele lisa e alva, aparece nua, andando pela casa o tempo inteiro, desejosa e desejante. As prostituas acabam por cansar-se e sentirem-se enojadas e mesmo entediadas diante de tanta comilança, diante do projeto louco, que não compreendem. Andrea fica, e cuida dos homens, se dá aos homens, oferece suas carnes, torna-se cúmplice do projeto, que compreende, em silêncio, e que acompanha até o fim.
Que cada um interprete o filme como queira. Lendo, ontem, vi críticos comentarem que trata-se de uma crítica ao capitalismo e seu consumo desenfreado e vazio. Que o filme ilustra perfeitamente a junção de Thânatos e Eros, tal como colocada por Freud. Que o filme tematiza o vazio da contemporaneidade, que é sobre a feminilidade, sobre a decadência, enfim....
O que fica, para mim, é o grande prazer e ter visto algo tão bom. Um filme lindo, inteligente, alegre e trágico ( e desculpem-me pela profusão de adjetivos). Um filme sobre o que é estar vivo, sobre a procura de sexo, comida, bebida, cultura, amizade, amor e morte, os sentidos e a falta de sentidos.
Sobre o vazio, o fim.
A Comilança estará em cartaz em SP no cine-clube do Belas Artes, até o dia 03 de maio, sempre as 19:00 horas. Meu, se vc for ou estiver em SP, não perca.
Fiquei com vontade de assistir, tô procurando pra baixar da net, pq aqui em Jataí eu duvido que tenha em locadora e muito menos no cinema...
ResponderExcluirAbraço.
Janaína.
Lulu, lindona, desculpe a falta de notícias. Tou com uma gripe danada, que não ata nem desata, mas maltrata. Mas vamos marcar novamente?!
ResponderExcluirBeijos.
Ah, sim. Comilança é isso mesmo e mais um pouco, acho. Não sei se a crítica ao capitalismo procede, mas a celebração da vida, da morte, essa sim tá lá, o tempo inteiro. Humanizar-se é o que fica. Como diz o Vonnegut: let´s go to fart around!
Eu achei pra baixar, mas como a minha net é via rádio e o arquivo tá com poucas fontes vai demorar...daqui uns meses te digo se gostei do filme...hehe
ResponderExcluirAbraço!
Janaína
Ih Jana,
ResponderExcluirvem prá cá prá sumpaulo e a gente vê o filme junta!! :)
depoi ssai prá comer!! hihihi...
Eu queria ir no Abralic aí em SP em julho... mas é quase na mesma data do GEL e eu já me increvi e vou apresnetar trabalho, sorte tua, já pensou eu batendo na tua porta?
ResponderExcluirCredo, coitada da Lulu...hehe
Vem pra cá vc, aqui não tem cinema bom nem loja e tal mas tem fazenda e muitas cachoeiras!
Se bem que pelo fuzuê todo do acampamento acho que vc não deve gostar muito de mato...hehe
Abraço.
Janaína
Clap! Clap! Clap!
ResponderExcluirBrava!
Bra´vissima Lulu!
Não tenho nada a acrescentar.
Brava!
Durante um jantar com amigos gasto boa parte do tempo falando sobre comida. Com a Luana não é diferente. No nosso último encontro no Arabia já deixamos pré-marcado um próximo jantar num restaurante japonês e descemos o cacete em pessoas sem noção que fazem comentários nonsense sobre gastronomia[bico]! Passado o desabafo iniciamos um papo sobre bons filmes que tratam do assunto e o primeiro que me veio à mente foi "A Comilança" do Marco Ferreri. Não é que a Luana tinha acabado de escrever sobre esse filme no seu blog ?!
ResponderExcluirAmanhã vou testar uma nova receita e pra isso preciso estar bem disposto logo cedo, no horario das compras...
João Paulo, meu querido!!
ResponderExcluirque delícia te ver por aqui!! Sempre com saudades de vc, meu amigo de bom gosto irretocável. ;-)