quinta-feira, 24 de maio de 2007

olhar para fora

O Polzonoff, ontem, fez um post interessante sobre a imaginação. Falava que os bons escritores, os grandes, são aqueles que conseguem imaginar. Que conseguem se colocar em outros lugares, e conseguem criar personagens diferentes de si próprios, conseguem, enfim, sair do próprio eu e têm capacidade imaginativa o suficiente para criar, de maneira genuína.

Eu acrescentaria que um bom escritor além da imaginação, deve também ter uma enorme curiosidade e interesse pelo mundo. Pelas pessoas. Durante uma época da minha vida fiz teatro e um dos exercícios era observar as pessoas a nossa volta. Reparar nos seus trejeitos, em como andavam, se movimentavam, falavam. Os melhores alunos eram aqueles que ficavam irreconhecíveis nessa arte de imitação, que de fato se transformavam na pessoa imitada, sem nenhum esforço aparente, que conseguiam, enfim, sair de si para entrar no outro.
Difícil prá burro. Para a oitava série, que está criando personagens, eu sempre pergunto: como esse personagem fala? Como ele olha o mundo? O que ele enxerga e o quê ele deixa escapar? Como ele sente e se comporta? E é uma arte, achar a voz das personagens, cada um tem uma voz.

E eu lembrei e contei pro Paulo, na caixa de comentários, de um aluno que tive uma vez, que se chama Enrico. Ele estava na quinta série e o exercício - que se mostrou difícil demais para uma quinta série - era criar um personagem que escrevesse em primeira pessoa.
O Enrico não conseguia, toda vez que escrevia EU não havia jeito: falava de si mesmo, e começava a falar da sua vida, de seus pais, amigos, do que gostava, não gostava, do que havia feito e assim por diante.
E eu cheguei para ele e disse:
- Não, Enrico. Você tem que criar um personagem, uma pessoa sobre a qual você vai falar.
O Enrico me olhou, abriu um sorriso e falou:
- Entendi!
E voltou a escrever.
A primeira linha:
O Enrico....

Essa história da quinta série, acontecida faz tempo, se tornou para mim uma espécie de parábola de algo que acontece muito na literatura contemporânea, por exemplo. Uma impossibilidade de se sair de si mesmo, de se falar de algo que vá além do umbigo, ou das entranhas, sei lá.

É claro que isso não impossibilita que se faça grande literatura, e os bons memorialistas estão aí. Ler as memórias de Pedro Nava, por exemplo, é um prazer dos grandes, absoluto. Mas o Pedro Nava, assim como Proust, é também um grande observador do mundo. Descreve os tipos e as pessoas que atravessaram sua vida com uma generosidade e entrega fenomenais, procura a palavra exata, nele, o texto escrito se torna maior que ele mesmo. E os personagens da sua vida ganham existência própria, os espaços ganham uma materialidade que só a entrega e um olhar para fora podem possibilitar.

Uma coisa é falarmos sobre nossa aldeia, e falando de nossa aldeia, falarmos sobre o mundo. Outra, bem distinta, é não conseguirmos sair de nós, de um auto encantamento que o Narciso já mostrou, há um bocado de tempo, que afoga. E o pior é que afoga não somente o próprio Narciso, muitas vezes afoga também todos aqueles que dele se aproximam e que, por serem diferentes, ele não consegue nem ver nem enxergar, quem dirá entender, amar, conhecer...
Haja solidão, haja deserto.

5 comentários:

  1. Seus posts sobre literatura são sempre um show de sensibilidade. Adoro. Arrasou.

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  2. Eu aprendo tanto lendo este blog que vc não tem noção, Dona Lulu!

    Vc fica dando tanta idéia legal pra trabalhar com os alunos e eu nessa correria de cursinho, revisão de conteúdo e tal...mas de vez em quando dá pra dar uma inovada:

    Segunda feira trabalhei a segunda geração romântica aí eu, que gosto pouco de fazer relações e analogia, levei um clipe do The Doors, dois no Nirvana e a carta de suicídio do Kurt Cobain, um clipe do Legião e uma charge sobre emos do Charges.com.br. Aí fui entremeando com poemas selecionados do Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu e tal, foi legal!

    Acredita que meus alunos todos na faixa dos 20 não conheciam Doors?

    Abraço!


    Janaína

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  3. Poxa, Lulu, esse teu post está fantástico.
    Vc vai além da literatura, e acho que a mensagem é essa mesma, né? Ir além. O problema é que no mundo pessoas com essa sensibilidade estão em extinção.
    Sorry pelo pessimismo.
    Bjs

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  4. Gigi!!
    Quanto tempo!! Adoro sua imagem de Rê Bordosa!!


    Janaína,
    bem bacanas a sua aula! vc não quer escrever também sobre as suas experiências? A gente publica aqui!
    Pensa, tá?


    Renata,
    muitas vezes o pessimismo é somente um sinal de sensibilidade....
    né?
    acho que sim.

    beijinhos a todos.
    Lulu

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  5. Vixi, Lulu.

    Eu comecei a dar aula o ano passado, ainda tenho muito chão pra realmente dar aulas legais.

    Esta overdose de relações que fiz na aula passada foi pra ver se quebrava um pouco o gelo daqueles adolescentes ... e posso dizer que eles nem acharam lá muito legal... acho que por causa do tipo de música. Vou tentar Bruno e Marrone na próxima vez, tenho certeza que atingirei eles. Com uma espingarda de cano duplo.


    hehehe

    Mas sabe que tô começando a ter vontade de voltar a escrever em blog?

    Ontem eu tava passando pela rua e vi um rapaz escorado num muro, bem na esquina. De longe parecia que ele tava falando bem empolgado no telefone. Quando cheguei mais perto, notei que ele tava cantando um pagode. De duas uma: ou tava gravando sua linda voz no celular pra usar como toque. Ou tava fazendo uma serenata online.
    O engraçado foi que eu fiquei com vergonha por ele (eu tenho essa coisa besta de ficar com vergonha pelos outros)pode? Fiquei sem graça de ter visto ele naquele moemento pop star, sei lá.

    Aí pensei, isso dava um post interessante...

    Sintomas.

    Bah, mas lisongeadíssima (é assim que escreve? ou é mania de sulista de por e onde tem i?)pelo convite a escrever e publicar aqui. Vc é corajosa mesmo, rsrs.

    Abraço.

    Janaína.

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