Hoje na escola é dia de aula de literatura. É assim: às segundas-feiras discutimos os livros lidos, às terças-feiras nos dedicamos à gramática, e sexta-feira é dia de redação. Todos os dias dou aulas para a quinta, sexta, sétima e oitava série.
Hoje com a quinta série conversarei sobre As aventuras de Tom Sawyer.
Com a sexta, sobre o livro Morte no Nilo, da Agatha Christie.
Com a sétima, estamos lendo O Cavaleiro inexistente, do Italo Calvino, e na oitava começamos a ler A hora da estrela.
É engraçado porque à medida que a tarde passa e as aulas seguem, mudam não somente os gêneros literários mas também os níveis de leitura.
Na quinta série a gente conversa sobre o enredo como se tivesse conversando sobre a turma ali da esquina. O Tom Sawyer afinal de contas é legal ou chato? Quais as espertezas dele? O que você achou legal que ele fez ali? Quem conhece alguém assim? O que você faria? O que você acha que vai acontecer? E assim por diante... conversamos sobre o livro, a história, o enredo, as personagens, as nossas expectativas como leitores. Um nível primeiro de leitura, de intelecção, apropriação do enredo, envolvimento com a trama. O nível mais fundamental. É muito difícil a gente gostar e se relacionar com aquilo que a gente simplesmente, não entende. E afinal de contas, literatura são, primeiramente, histórias bem contadas.
Na sexta série, ao lermos a Agatha Christie, também conversamos sobre a trama, fazemos hipóteses sobre os assassinos e assim por diante, mas já é possível começar a notar, junto com os alunos, como a autora constrói e arquiteta a narrativa do enredo. Como ela cria expectativas falsas nos leitores, pistas falsas, como mostra as motivações de cada suspeito e de que tipo de motivação se trata. Dá até para discutir estilo, os meninos por exemplo reclamaram na última aula que parece novela, porque as personagens se amam, ou se odeiam, ou querem se vingar, e no final percebemos, juntos, que é tudo meio simplificado. Depois, e o mesmo acontece em novelas, todos os enredos se cruzam, todo mundo tem alguma ligação entre si, de maneira às vezes bastante forçada ( sim, uma menina levantou a mão para comentar como nas novelas todo mundo vai sempre para o mesmo hospital, para a mesma delegacia... as "coincidências" ficcionais, que ocorrem em qualquer trama mas que às vezes são forçadas demais).
Depois quando lermos Sherlock Holmes, e os contos de mistério de Edgar Allan Poe poderemos fazer uma comparação quanto aos estilos.
De qualquer maneira, para além da intelecção, os alunos da sexta série já notam a mão do autor no texto, a urdidura da composição narrativa. Lêem desconfiados do que o narrador lhes conta, procuram mais significados nas entrelinhas. São leitores detetives.
Na sétima alguns alunos estão tendo dificuldades com o Italo Calvino, por causa da linguagem, do vocabulário difícil. Então meu papel é um pouco voltar ao esquema da quinta, discutindo o enredo e as características das personagens, mas com um grande plus ultra: a partir do que é dito a gente pode pensar sobre o mundo. O que é esse negócio de alguém que não existe? Que vive sob o comando estrito da lei e da ordem, sempre sob uma armadura impecavelmente branca, mas que não tem existência alguma, não tem corpo, só armadura? Tem gente assim no mundo? O que dá identidade a uma pessoa? E o outro personagem, o Gurdulu, que tem existência mas não tem consciência, e ao tomar sopa, não sabe se é ele que toma a sopa ou a sopa que lhe toma? Que ao redor de sapos se transforma em sapos e junto de uma árvore, se transforma em árvore? E aí na sétima, todo mundo adolescentando, há muito o que conversar e pensar. E essa narradora? Uma freira num convento que escreve por penitência? E aí também começamos a ver os diversos tipos possíveis de narrrador, e o que acontece quando um narrador é também personagem da história. Enfim, na sétima série a leitura passa ser mais interpretativa.
Na oitava, A Hora da estrela. Primeira dificuldade: toda a primeira parte do livro não conta nada. Nada acontece. O cara fica só viajando. Puta saco.
É verdade. Toda a primeira parte do livro é do narrador falando sobre o ato de escrever e criar, da sua condição, da sua necessidade de escrever, do porquê. Para mim é emocionante e lindo, para eles, um saco. Normal, isso. Eles estão acostumados com narrativas fundadas em ações. Não só no que lêem, mas nos filmes, novelas, joguinhos, na vida. E aí vem meu papel, o mais difícil talvez. De, junto a eles, fazer perceber que a literatura, além de ação, é também e principalmente linguagem. Que inclusive pouco importa o que vai acontecer, que o que faz a arte é como o que vai acontecer é construído através das palavras. Que ahistória é a composiç´~ao das palavras no papel. Que é por isso que a gente pode reler mil vezes um bom livro, mesmo sabendo a história de cor. Que na hora da estrela essas palavras são de um narrador muito bem definido. Que tem uma relação de amor e ódio com a personagem. Que é rico, do sudeste, escritor, que se vê incomodado por uma menina pobre, nordestina, analfabeta. Que se trata de uma relação tensa. Que a Clarice não é o narrador, mas que o toque de gênio dela é a capacidade de criação desse narrador. Que o romance tem duas narrativas, uma, a história da Macabéia, outra, a história da construção do próprio romance, a história do narrador em relação à sua personagem.
E aí, depois disso tudo, cabe vermos os significados todos que essas tensões constróem. Enfim, na oitava série podemos começar a pensar, inclusive, sobre o que é a literatura.
Esse é meu dia, hoje. Quatro aulas de sessenta minutos. Confesso que as segundas-feiras sempre me deixam um pouco nervosa.
Hoje com a quinta série conversarei sobre As aventuras de Tom Sawyer.
Com a sexta, sobre o livro Morte no Nilo, da Agatha Christie.
Com a sétima, estamos lendo O Cavaleiro inexistente, do Italo Calvino, e na oitava começamos a ler A hora da estrela.
É engraçado porque à medida que a tarde passa e as aulas seguem, mudam não somente os gêneros literários mas também os níveis de leitura.
Na quinta série a gente conversa sobre o enredo como se tivesse conversando sobre a turma ali da esquina. O Tom Sawyer afinal de contas é legal ou chato? Quais as espertezas dele? O que você achou legal que ele fez ali? Quem conhece alguém assim? O que você faria? O que você acha que vai acontecer? E assim por diante... conversamos sobre o livro, a história, o enredo, as personagens, as nossas expectativas como leitores. Um nível primeiro de leitura, de intelecção, apropriação do enredo, envolvimento com a trama. O nível mais fundamental. É muito difícil a gente gostar e se relacionar com aquilo que a gente simplesmente, não entende. E afinal de contas, literatura são, primeiramente, histórias bem contadas.
Na sexta série, ao lermos a Agatha Christie, também conversamos sobre a trama, fazemos hipóteses sobre os assassinos e assim por diante, mas já é possível começar a notar, junto com os alunos, como a autora constrói e arquiteta a narrativa do enredo. Como ela cria expectativas falsas nos leitores, pistas falsas, como mostra as motivações de cada suspeito e de que tipo de motivação se trata. Dá até para discutir estilo, os meninos por exemplo reclamaram na última aula que parece novela, porque as personagens se amam, ou se odeiam, ou querem se vingar, e no final percebemos, juntos, que é tudo meio simplificado. Depois, e o mesmo acontece em novelas, todos os enredos se cruzam, todo mundo tem alguma ligação entre si, de maneira às vezes bastante forçada ( sim, uma menina levantou a mão para comentar como nas novelas todo mundo vai sempre para o mesmo hospital, para a mesma delegacia... as "coincidências" ficcionais, que ocorrem em qualquer trama mas que às vezes são forçadas demais).
Depois quando lermos Sherlock Holmes, e os contos de mistério de Edgar Allan Poe poderemos fazer uma comparação quanto aos estilos.
De qualquer maneira, para além da intelecção, os alunos da sexta série já notam a mão do autor no texto, a urdidura da composição narrativa. Lêem desconfiados do que o narrador lhes conta, procuram mais significados nas entrelinhas. São leitores detetives.
Na sétima alguns alunos estão tendo dificuldades com o Italo Calvino, por causa da linguagem, do vocabulário difícil. Então meu papel é um pouco voltar ao esquema da quinta, discutindo o enredo e as características das personagens, mas com um grande plus ultra: a partir do que é dito a gente pode pensar sobre o mundo. O que é esse negócio de alguém que não existe? Que vive sob o comando estrito da lei e da ordem, sempre sob uma armadura impecavelmente branca, mas que não tem existência alguma, não tem corpo, só armadura? Tem gente assim no mundo? O que dá identidade a uma pessoa? E o outro personagem, o Gurdulu, que tem existência mas não tem consciência, e ao tomar sopa, não sabe se é ele que toma a sopa ou a sopa que lhe toma? Que ao redor de sapos se transforma em sapos e junto de uma árvore, se transforma em árvore? E aí na sétima, todo mundo adolescentando, há muito o que conversar e pensar. E essa narradora? Uma freira num convento que escreve por penitência? E aí também começamos a ver os diversos tipos possíveis de narrrador, e o que acontece quando um narrador é também personagem da história. Enfim, na sétima série a leitura passa ser mais interpretativa.
Na oitava, A Hora da estrela. Primeira dificuldade: toda a primeira parte do livro não conta nada. Nada acontece. O cara fica só viajando. Puta saco.
É verdade. Toda a primeira parte do livro é do narrador falando sobre o ato de escrever e criar, da sua condição, da sua necessidade de escrever, do porquê. Para mim é emocionante e lindo, para eles, um saco. Normal, isso. Eles estão acostumados com narrativas fundadas em ações. Não só no que lêem, mas nos filmes, novelas, joguinhos, na vida. E aí vem meu papel, o mais difícil talvez. De, junto a eles, fazer perceber que a literatura, além de ação, é também e principalmente linguagem. Que inclusive pouco importa o que vai acontecer, que o que faz a arte é como o que vai acontecer é construído através das palavras. Que ahistória é a composiç´~ao das palavras no papel. Que é por isso que a gente pode reler mil vezes um bom livro, mesmo sabendo a história de cor. Que na hora da estrela essas palavras são de um narrador muito bem definido. Que tem uma relação de amor e ódio com a personagem. Que é rico, do sudeste, escritor, que se vê incomodado por uma menina pobre, nordestina, analfabeta. Que se trata de uma relação tensa. Que a Clarice não é o narrador, mas que o toque de gênio dela é a capacidade de criação desse narrador. Que o romance tem duas narrativas, uma, a história da Macabéia, outra, a história da construção do próprio romance, a história do narrador em relação à sua personagem.
E aí, depois disso tudo, cabe vermos os significados todos que essas tensões constróem. Enfim, na oitava série podemos começar a pensar, inclusive, sobre o que é a literatura.
Esse é meu dia, hoje. Quatro aulas de sessenta minutos. Confesso que as segundas-feiras sempre me deixam um pouco nervosa.
Lulu,
ResponderExcluirDevem ser deliciosas, essas aulas. Estimulantes.
Lembro-me que, com essa idade, na escola em que eu estudava, quando algum aluno aprontava alguma coisa grave, ele era enviado à biblioteca, onde ficava trancado e era obrigado a ler um livro e resumí-lo no dia seguinte. Ou seja, a gente relacionava o ato da leitura ao castigo.
Isso é um absurdo, mas era isso o que acontecia!
Quando eu crescer vou dar aula que nem a Lulu!
ResponderExcluirJanaína
PS: Espero que eu cresca rápido e aprenda a botar aluno pra fora da sala antes que me botem pra fora do cursinho...
Luana, fiquei muito feliz de ler o post de hoje.
ResponderExcluirQueria ter tido uma professora assim, que sofre, fica um pouco nervosa porque precisa dar algumas aulas.
Deve ser muito bom ter um professor assim. Da maneira que vc conta dá vontade de assitir tuas aulas.
O castigo aí que o Arnaldo fala até hoje é utilizado. Meu netinho estudava numa pré-escola e as "tias" colocavam os pequenos de castigo na biblioteca. Na primeira vez que ele me falou, fui lá e dei um esporro nas fulanas. Da coordenadora pedagógica à pajem, ouviram poucas e boas.
Um beijo grande
quer ser minha professora? =]
ResponderExcluirQue maravilha!
ResponderExcluirEntão, hoje em dia temos Agatha Christie nas escolas? Que bárbaro!
Eu era fissurada nessa escritora, na minha adolescência; li quase tudo dela, por indicação de minha mãe. Eu sempre comentava que era o tipo de leitura que deveria ser trabalhada com os alunos, para incentivar o prazer de ler!
E tem ainda Italo Calvino e Edgar Allan Poe? Ai, eu também quero assistir às suas aulas, Lulu!!! ;-)
Lulu,
ResponderExcluirvou fazer uma pergunta muitoaudaciosa, sob a capa da ingenuidade.
Você realmente diz, para seus alunos da oitava série que Clarice não o "narrador, mas que há entre a história e Clarice um narrador criado por ela?
E que há uma tensão , digamos social, de classe entre o..er...narrador aí criado e a personagem Macabéa?!!!
Olhe, estou boba,
Um beijinho , dois ou três, minha querida.
Twain (5ª), Christie (6ª), Calvino (7ª), Clarice (8ª).
ResponderExcluirColocando o Milton de 13 e 14 anos como teu aluno, acho que eu não gostaria, especificamente, do Calvino. Já talvez a complexidade de Clarice me agradasse, se eu conseguisse chegar lá. Tenho minhas dúvidas.
Posso ir às aulas?
Lu,
ResponderExcluirDeleitei-me com suas aulas de literatura... Queria ter tido um(a) professor(a) assim, como você! Espero que seus alunos percebam e aproveitem esta oportunidade rara!
“A hora da estrela” remeteu-me a algumas canções (pra ouvi-las, basta clicar nos títulos).
Bjão,
Clé
O Silêncio das Estrelas
Lenine & Dudu Falcão
Solidão
O silêncio das estrelas
A ilusão
Eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos
Como um deus, e amanheço mortal
E assim,
Repetindo os mesmos erros,
Dói em mim
Ver que toda essa procura não tem fim
E o que é que eu procuro afinal?
Um sinal,
Uma porta pro infinito,
O irreal
O que não pode ser dito,
Afinal
Ser um homem em busca de mais
Afinal
Como estrelas que brilham em paz
Estrela da terra
Dori Caymmi & Paulo César Pinheiro
Por mais que haja dor e agonia
Por mais que haja treva sombria
Existe uma luz que é meu guia
Fincada no azul da amplidão
É o claro da estrela do dia
Sobre a terra da promissão.
Por mais que a canção faça alarde
Por mais que o cristão se acovarde
Existe uma chama que arde
E que não se apaga mais não
É o brilho da estrela da tarde
Na boina do meu capitão.
E a gente
Rebenta do peito a corrente
Com a ponta da lâmina ardente
Da estrela na palma da mão.
Por mais que a paixão não se afoite
Por mais que minh'alma se amoite
Existe um clarão que é um açoite
Mais forte e maior que a paixão
É o raio da estrela do noite
Cravada no meu coração.
E a gente
Já prepara o chão pra semente
Pra vinda da estrela cadente
Que vai florescer no sertão.
Igual toda lenda se encerra
Virá um cavaleiro de guerra
Cantando no alto da serra
Montado no seu alazão
Trazendo a estrela da terra
Sinal de uma nova estação
Ah, esqueci de dizer: a 1ª, cantada por Lenine e a 2ª, por Renato Braz.
ResponderExcluirah, eu quero assistir as tuas aulas. todinhas. até as da gata triste.
ResponderExcluirLindas escolhas, querida.
ResponderExcluirTom Saweyr arrebenta mesmo.;0)
Depois posta a discussão com eles, deve dar um delicioso texto.;0)
Adoro Calvino, deve ser desafiador trabalhar com ele na sétima.
Já discutiu "Quando um viajante...." com eles? É o meu favorito. Vou enfiar Calvino na minha dissertação, depois comento com vc por email.
beijos e boas aulas!!!
Arnaldo, por incrivel que pareça...a biblioteca ainda é "lugar do castigo" em várias escolas...;0(((
ResponderExcluirA todos,
ResponderExcluirmuito muiot obrigada, e desculpem essa boba aqui que estava sem saber como responder comentários.
Um beijo grande,
o diálogo continua
L.
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