sexta-feira, 10 de agosto de 2007

dia de redação 2

Os leitores atentos e de boa memória desse diário já sabem que sexta feira no curso de português da lulu é dia de redação ( segunda: leitura; terça: gramática. )
Quero contrar da sexta passada, que não só foi dia de redação como também foi o primeiro dia de aula depois das férias, as aulas começaram na quarta feira, então só encontrei os meninos sexta.

Com a quinta série o grande estudo de redação é entender bem como se compõem as histórias, do que são feitas as narrativas e quais as regras da narrativa.

Perceber que toda história tem personagem ( tooodaaa? toda. mesmo se vc fizer as aventuras do ventilador maluco, o ventilador maluco será o seu personagem). Toda história se passa em algum lugar ( toooda?? toda. Um quarto, um país, uma casa, uma escola, um lugar que é o nada, uma encruzilhada, uma cozinha, mil cidades, um avião... ), toda história tem um tempo (uma duração. não existem ações fora do tempo, então toda história dura um tanto. Ela pode durar para sempre, e ter começado a acontecer desde tempos imemoriais, mas a narrativa vai pegar uma fatia de tempo e escolhê-la para narrar. Pode-se narrar um dia, a história pode ter a duração de uma almoço, pode acontecer em três minutos, em décadas e décadas, pode atravessar gerações. Muita coisa pode acontecer, em espaços mínimos e enormes de tempo, cada história tem o seu, mas todas as histórias duram algum tempo, desenvolvem-se no tempo). E o enredo. Como os personagens agem, vivem, pensam nesse espaços/espaços, por uma fatia de tempo determinada. ( toda história tem enredo? sim, mesmo nas que não acontece nada. Ai professora, essas são bem chatas, né?)

Os escritores são como espécies de deuses que, com elementos simples, criam mundos, personagens, determinam durações, e então criam histórias. Há histórias que primam pela excelência dos personagens. Outras, em que o espaço ocupa um papel fundamental ( vamos lá: o que seria de Harry Potter sem Hogwarts? Aquela escola é o máximo!), outras que centram-se na passagem do tempo, outras que centram-se no enredo, na sucessão de ações e acontecimentos. Pode haver histórias quase sem enredo (odiadas com todas as forças pelos adolescentes. Depois a gente fica mais tolerante com histórias quase sem enredo. Engraçado isso, talvez seja porque aprendemos a apreciar a estética literária em si, mais que a historinha, que importa cada vez menos. Afinal, o que dá mesmo a qualidade à obra não é o quê ela conta, mas como ela conta aquilo que conta. ). Há histórias sem marcação de tempo, de espaço, mas os elementos da narrativa são esses.

E aí, quando vamos contar a tal da história, aparece a figura do narrador, e então vem a última escolha que o escritor tem que fazer: escolher seu foco narrativo, como contará a história, com posicionará sua câmera. Toda história contada é contada de alguma perspectiva, não tem jeito.
Pode ser uma narrativa em primeira pessoa, e aí a perspectiva será toda parcial. Essa primeira pessoa pode ser a protagonista ou não da história ( e não há nada mais difícil que construir uma narrativa em primeira pessoa, na quinta série ainda não rola. Começa a poder acontecer lá pela sétima, ou oitava). Pode ser uma narrativa em terceira pessoa, e aí vem o tal do narrador que vai falar sobre o outro. O outro pode ser um outro mesmo, e o narrador pode ser quase transparente, ou seja, imparcial, onisciente, onipresente, etc. ou, o narrador pode ser um personagem da história, sem participar necessariamente dela, pode narrar algo que viu ou ouviu; o narrador pode ser um personagem. De qualquer forma, o narrador já não tem nada a ver com o escritor, e essa é uma lição importante aprendida na quinta série já, e esquecida, esquecida, esquecida. O que se confunde narrador e escritor por aí, não é brincadeira. De qualquer forma, o foco narrativo define tudo o que a história vai mostrar, e o que ela não vai mostrar.

O que a gente faz na quinta série e no curso de redação em geral é uma série de exercícios que trabalham todos esses elementos da composição narrativa. Ninguém precisa sair escritor, mas é bacana poder inventar uma história, escrevê-la com clareza, e ter critérios de discussão e avaliação claros. A qualidade literária das histórias, o como elas são narradas, a escolha das palavras, a criação deimagens poéticas, quase nem ligo para isso, até porque isso acaba criando uma certa presunção, ou mesmo bloqueios. O importante é contar histórias, bem construídas, e compreensíveis. Quem sabe fazer isso, já sabe um monte.

No primeiro dia de aula da quinta série, falei um pouco disso tudo - e é fácil falar disso usando exemplos de narrativas infantis clássicas, onde todos esses elementos aparecem de forma bem evidente, especialmente o espaço: Nárnia, A Terra Média, A Terra do Nunca, A Ilha do tesouro... . Queria trabalhar com eles a noção de verossimilhança, fundamental em qualquer narrativa que se preze.

O povo acha às vezes que ser verossímil significa ser possível, dentro do nosso mundo. Então sai do filme de dinossauros falando assim: isso não é verossímil, que filme ruim.
Nadica disso.
( agora, permitam-me uma digressão)


Dentro desse mundo da ficção, o compromisso é muito mais com a verossimilhança do que com a mimese, a mimese acontece, mas é a verossimilhança o ponto principal. Explico-me:
a criação literária não precisa ser uma imitação do mundo tal como ele é. O critério de sentido de uma obra, de convencimento, não está no quão semelhante ao nosso mundo ela é. O que nos faz crer numa obra literária, ou num filme, é a tal da verossimilhança, no sentido interno, da coerência interna que tal obra deve ter. A obra deve ser semelhante a si mesma, fiel aos seus princípios internos de construção.
Por exemplo: eu posso inventar um mundo onde há dinossauros, e eu quero no entanto que esse seja o mundo contemporâneo, de hoje em dia, tal como ele é. Eu preciso , então, dentro das regras do mundo de hoje em dia tal como ele é, elaborar estratégias que convençam o espectador da possibilidade de existência de dinossauros andando vivos por aí. Então eu tenho que inventar alguma história que sustente a possibilidade de em uma ilha secreta haver um jardim zoológico pré histórico. Coloco cientistas vestidos de jaleco ali, incremento o lance com pitadas de teorias científicas da moda, teoria do caos, por exemplo, crio reuniões governamentais onde tudo isso é discutido, invento um milionário bem louco que financiou tudo aquilo, mostro experimentos genéticos, coloco logo no início do filme alguém dando uma aula sobre tudo isso ( geralmente para um ouvinte cético) e voilá! a ficção está montada, e a gente assiste e pode acreditar no que está vendo. Me entendam: essa crença não precisa ser uma crença ingênua, onde a gente sai do cinema e pensa: puxa, onde eu vou encontrar o próximo dinossauro? Mas tem que ter um nível de crença suficiente para a gente ligar prá se o menininho vai ou não escapar daquela ilha vivo. A apreciação da arte requer algum tipo de entrega, deve-se entrar no faz de conta, e quando a gente entra, e chora, torce, vibra, se emociona, passa nervoso, cria afeto pelos personagens, já é bem legal. Num nível mais sofisticado, é possível também apreciar as obras como quem ouve uma música erudita, reparando na composição, nas palavras, no ritmo, nas cores, na descrição, na arte mesma da forma da obra.
Se a obra não é verossímil, se ela não te convence, se é mal composta, a gente fica pensando assim: puxa, esse roteiro tem furo; puxa, esse ator até que tá bem; puxa, esse cenário tá bem feito...; puxa, onde será que a gente vai jantar depois? ...
nesses casos a gente não só lembra do faz de conta ( e Brecht que me perdoe, mas eu acho isso um saco) como também se distancia, não é levado, não comunga mais com a obra, e não há encanto de composição. A verossilhança, repito, é interna, e é fundamental dentro da obra de arte. A arte pode representar o impossível, e esse se torna ou não verossímil graças à técnica e arte do artista criador.
( fim da digressão)

Então os primeiros exercícios da quinta série do segundo semestre de aula foram dois:
1) imagine um lugar frio, muito frio, gelado mesmo. Uma temperatura média de menos dez graus. Um lugar onde o sol quase nunca aparece e quando vem é pálido e fraco, e dura somente algumas horas. Um lugar onde sempre é de noite, onde neva, e venta. Imagine as cores desse lugar, a sensação de estar nesse lugar. O quê se come num lugar como esse? Como as pessoas vivem?
Agora, crie dois personagens que vivem nesse lugar.
- Pode ser um ser? Tipo um monstro da neve?
- Pode. A única coisa é que a criação tem que ser bem completa, como é esse personagem que vc criou, do que ele vive, como ele vive, onde mora, o que come, tudo, tudo , tudo.
- Pode desenhar?
- Depois que vc tiver escrito, pode.

( quanto mais tempo durar a descrição inicial e alguma discussão, mais fácil fica o exercício, porque todo mundo fica imaginando mesmo, e aí é baba)

2)Imagine um lugar muito quente e sem praia. Um deserto, onde a média de temperatura durante o dia chega a ser 40 graus. Ali tudo é muito quente, à noite esfria, mas durante o dia é quente mesmo. O sol nunca dá uma trégua, e chove de vez em nunca. Há pouca água. Quais são as cores desse lugar? Como seriam as casas desse lugar? Qual a paisagem?
Agora, crie dois personagens, ou seres, ou bichos, que vivam nesse lugar. A descrição tem que ser bem completa, muito completa, o melhor que vc conseguir, quanto mais detalhe, mais eu vou me convencer de que esse bicho, ou homem, ou ser, existe mesmo. Só pode desenhar quando tiver acabado de escrever ( sim, tem que repetir todas as instruções novamente, umas dez vezes, pelo menos) .

Essa foi a aula de redação da quinta. Me empolguei tanto que quase não sobrou espaço para falar das outras séries. Mas a escrita é assim mesmo também, toma caminhos apesar da gente, toda essa construção teórica na verdade serve de pouco quando estamos escrevendo, as palavras é que mandam. Mas vamos lá:

Na sexta, eles estão revisando um livro de histórias de detetive que fizeram.

Na sétima, eles estão lendo e escrevendo histórias de realismo fantástico, ou mágico. O tema de redação foi:
Esfeluntes.
- Como assim?
- Esfeluntes, oras bolas.
- O que é esfeluntes?
- Não sei.
- E aí?
- e aí sei lá, ué. tem que aparecer esfeluntes na história.
- em qualquer lugar? de qualquer jeito? pode ser o que eu quiser?
- sim.
- Pode ser uma doença? um sentimento? um ser? uma coisa? um nome?
- sim.
- eu posso escrever qualquer coisa e botar esfeluntes no meio?
- sim.
- tá.

Juro, eles fazem. Primeiro, porque é divertido, ou pode ser divertido. Depois, porque essas são as regras do dia de redação: tem que produzir pelo menos vinte linhas. Não tem conversa. Depois pode levar para casa, melhorar, começar até de novo, mas quem não escrever vinte linhas na aula fica com zero. Sério. Sem frescura de inspiração, vai escrevendo, deixa que a sua mão lhe leve.
Sabem quantos zeros eu dei até hoje? nenhum. é gostoso escrever, a aula de redação acaba servindo como uma pausinha no tempo, cada um na sua, inventando os seus negócios. às vezes fica bom, às vezes fica ruim, mas não importa, esse exercício de fluidez de escrita é bem importante, escrever no ritmo do pensamento é algo que se adquire com o treino, com a escrita, e escrever se aprende escrevendo, então vamos lá. Esfeluntes.


E na oitava, mesmo esquema.
Oi e tal. Nada de perguntar das férias, nadica disso. Vamos ao ponto, uma redação, para hoje pelo menos vinte linhas. Se você resolver a história em menos linhas, ok ( na oitave eles já começam a ficar mais espertos). Tá, não tem tamanho mínimo nem máximo. Tem qualidade e honestidade.
Tema:
- a ponte.
- que pooonte?
- qualquer uma.
- mas como assim?
- "a ponte", gente. Comecem a pensar. Tem algo embaixo dessa ponte? de um lado e de outro? é esse o tema, a ponte. e nãos e esqueçam: tema não é título.
- pode ser uma ponte metafórica ou precisa ser uma ponte mesmo?
- pode ser a ponte que vc quiser. Vamos lá.

e assim passa o dia de redação. Sim, é o dia mais legal da semana.

Leia também: dia de redação.






10 comentários:

  1. Que historinha mais esfeluntes!

    (-:

    --saff

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  2. Lulu,
    Lembrei dos meus tempos de escola e das redações. Detestava temas livres, achava mais fácil escrever tendo um tema como norte. Era a única matéria em que conseguia saír-me bem. Depois foi ficando mais difícil fazer, achava o tempo curto, não dava para que eu desenvolvesse direito as idéias. Criei então um método interessante. Fazia em casa redações que pudessem ser adaptadas a qualquer tema e decorava, sempre tive facilidade em decorar textos. Na hora da prova era só acrescentar um parágrafo, mudar alguma coisa, tudo para me adeqüar às exigências. Era quase como colar. Depois criei um pequeno negócio. Fazia as redações e vendia para os colegas. Um professor, dizendo reconhecer meu estilo, acabou com a festa. Hoje considero um dos melhores elogios que tive. Bons tempos aqueles.
    Grande beijo

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  3. Lulu,

    Vou escrever sobre esfeluntes!!! o que quer que seja isso.

    Beijos
    miranda

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  4. A sua digressão foi para me dar uma cutucada, é, Lulu? ;-)

    http://incautosdoontem.blogspot.com/2007/08/meus-casos-com-brecht.html

    P.S.: O dia mais legal é o de análise de poemas (ou de outro documento histórico qualquer, normalmente artístico) para procurar as características históricas da época.

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  5. Lulu, não me canso de te ler e fico embevecida com suas aulas!

    Você é rara...

    bjo gde,
    Clé

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  6. Saliel,
    ôpa!! bota esfeluntes nisso!
    :)
    um abraço,
    Lu!

    LORD,
    sua história é sensacional! é claro que vou contá-la pros alunos, adorei. Decorar as redações e deixá-las pré prontas! Imagina... aodrei, obrigada, por aperecer e partilhá-la conosco!
    Beijo,
    Lu.

    MIRANDA,
    pronto, escreve e me manda, tá?
    almluana@gmail.com
    oba!

    ULISSES,
    nem tinha lido ainda! vou correndo agora ler!:)

    Clélia,
    ow Clelia...

    puxa. obrigada. mesmo.
    um beijo grande,
    Lu.

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  7. Vivien,
    só seu eu puder ser sua aluna também!!

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  8. vc me faz querer dar aulas pra criancas de novo

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  9. Leio seu blog sempre mas quase nunca comento. Mas seus posts sobre suas aulas sao incriveis... a gente sente o "clima" da aula e tem vontade de virar aluno de novo! bjs!

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