Nessa semana reli dois livros dos quais gosto muito: The great Gatsby e Três mulheres de três pppês, do Paulo Emilio Salles Gomes.
Falarei do segundo.
A obra foi recentemente republicada pela editora Cosac e Naif, em edição bem cuidada, revisada e bela, como de resto são todas as publicações da editora. Em edição cara, como de resto são também todas as publicações da editora.
A edição que eu tenho é uma da Perspectiva, encontrada em sebo, lá dos idos do século passado, mais precisamente do ano de 1977.
O Paulo Emílio Salles Gomes é um dos grandes críticos e pensadores de cinema que temos, tivemos e teremos entre nós. Daquela turma da pesada, Antonio Candido, Decio de Almeida Prado, Anatol Rosenfeld e tal... Um pessoal culto, apaixonado, politizado sem tacanhez, que escrevia com elegância e susbstantivos e formava um pensamento brasileiro, sobre as coisas do Brasil. Intelectuais de mão cheia, de uma época onde ainda havia jeitos e espaços para grandes trabalhos, para a formação de grandes pensamentos, e para uma amplitude de estudos e conhecimentos que fazem corar a nós, especialistas e obsessivos com questíunculas a respeito de um único livro de um único autor. Paulo Emilio formou escola, e formou e forma a todos nós, quando nos ensina a ver e pensar sobre cinema.
E eis que um dia Paulo Emilio surpreende a todos os amigos com a publicação de um livro de ficção.
O livro é composto por três narrativas, que correspondem aos três PPPês do título:
P I : Duas vezes com Helena
P II: Ermengarda com H
P III: Duas vezes Ela
O narrador chama-se Polydoro. Mas não pronunciemos nem facilitemos com o nome do narrador, ele o odeia, tem vergonha, prefere que o chamem de P, ou que lhe tratem pelo sobrenome. Esse nome, "que marcou a ferro minhas aspirações à harmonia e à elegância num mundo cruel e arbitrário", é revelado somente ao final da primeira narrativa, quando o narrador, derrotado, a assina, escrevendo - pela primeira vez- seu nome por extenso:
Assino meu nome todo completando o P que habitualmente anteponho ao sobrenome. Me chamo com efeito Polydoro, combinação favorável de cinco consoantes e três vogais mas cuja relação a nova ortografia altera, nome de palhaço dado em homenagem a um bisavô ilustre e que marcou a ferro minhas aspirações à harmonia e à elegância num mundo cruel e arbitrário, cuja lógica secreta sempre ignorei apesar da rara oportunidade que me foi concedida: conhecer o Grande Mestre.
Deixo aqui o suspense a respeito da enigmática oração final, a respeito do Grande Mestre. Para os que gostam de histórias, revelo que a primeira narrativa trata de uma história de amor, onde o velho enredo do triângulo amoroso aparece. Uma narrativa em dois tempos, que envolve a juventude de P e seu amor por seu grande e maior mestre e um encontro com a esposa do professor, aos vinte e cinco anos de idade, que marcaria a separação do aluno e do professor. E o reencontro de P com o casal, aos cinquenta anos, quando a história da juventude é contada novamente, pela voz de Helena, a esposa.
Também a segunda e a terceira histórias são histórias de amor, onde há espaço para a traição, a decepção, e mesmo a crueldade - como aliás são as verdadeiras e belas histórias de amor. Aí é que está. Os três Polydoros, ou melhor, os três Pppês, narram três histórias de amor, desencontro e cegueira; um desencontro pautado pela impossibilidade de se compreender a narativa do outro, a história mesma, de se viver junto, de conehcer o outro; ou as mulheres.
E as histórias sempre se desdobram e se revelam diferentes do que se pensava. A cada história, em certomomento, as mulheres tomam a narrativa, seja por diárois, pela fala, por cartas, e a desfazem, palavra a palavra, destruindo os Polydoros ( e nesses momentos sempre o chamam pelo nome completo) ao mesmo tempo que se revelam para eles. E os três Pppês são sempre um tanto ridículos, machistas, o próprio personagem burguês, um pouco satisfeito demais consigo mesmo, orgulhoso de suas posses e de seus escritos bastante patéticos ( por exemplo, uma ode em louvor à Dama paulista) de suas conquistas amorosas e intelectuais. Além disso, chamam-se Polydoro, e o nome os persegue.
Assim, o que seriam histórias um tanto romancescas e mesmo chavões, perpassadas por brincadeiras com recursos narrativos também um tanto chavões, passa a ser obra de gênio, pela ironia e o humor que atravessam o livro inteiro.
Emengarda, com H, a mulher do segundo Pê, assim que chegou à casa do alto de Pinheiros, para ficar ( Ermengarda ocupou minha vida anos e anos a fio e mais ocuparia se não fosse uma dessas coisas que interrompe a continuidade do casamento e proíbe o retorno. Nunca foi tão adequado, como aqui, o verbo ocupar nos vários sentidos que o pequeno dicionário da língua propõe: tomar posse de; estar na posse de; habitar; tomar; encher; ser objeto de; atrair; exercer; ter direito a ; invadir; estender-se sobre; tomar o lugar de; prender a atenção de; entreter; empregar; etc. Ermengarda instalou-se confortavelmente em mim de nossos trinta aos quarenta e tantos anos. Tínhamos a mesma idade.), seguidamente passa a chamá-lo pelo nome inteiro, prenúncio da tragédia que estava a ser escrita e vivida:
De maneira que levei um choque quando no prelúdio da nossa união oficializada em país vizinho e amigo, Ermengarda pronunciou as quatro sílabas fatais. E as repetiu. Quando me preparei para reagir, tomou a dianteira: gostava de mim sem tirar nem pôr uma vírgula ou um nome, acrescentou maliciosamente. Mas era uma fanática da verdade e a verdade era que meu nome era aquele.
E entre a insistência de Pê em chamá-la de Ermengarda sem a aspiração do H e a insistência de Ermengarda de chamá-lo de Polydoro, faz-se uma narrativa em três tempos. A vida do casal e suas famílias, Pê no trabalho, a casa no Alto de Pinheiros, a piscina, sempre abarrotada de uma infinidade de primos de Ermengarda, os amigos, o dentista, a raiva. A descoberta de um diário de Ermengarda, onde Pê novamente se faz espectador de sua prórpia história, que lhe é revelada totalmente distinta daquilo que pensara. A descoberta de um terceiro diário, que ressignifica tudo outra vez. A história dessa ocupação.
O terceiro Pê já é um homem velho. Que abre dois carnets para falar de Ela, sua mulher, bem mais nova.
Reconheço que ao encontrar Ela - ela teria uns dezesseis anos - , um abismo de tempo se evidenciava na aparência física. Espiritualmente, porém, sempre estivemos próximos. No correr dos anos a diferença entre Ela e eu se atenuou e quando veio a ser minha esposa aos trinta eu precisava fazer esforço para lembrar-me que podia ser minh aneta. Tudo aconteceu como se eu tivesse parado no tempo a sua espera e como se ela tivesse se apressado em chegar. Abafando sua juventude em toaletes austeras, a maturidade precoce era facilitada pelo sutil amarelecimento da tez que denuncia o prolongamento da virgindade. Esses dois pontos, um subjetivo e outro objetivo, meu sentimento de ser jovem e a virgindade de Ela, embaraçaram nossa noite de núpcias, longa e laboriosa, no fim da qual não fora atingido o objetivo a que se propõe.
A narrativa dessa noite de núpcias é das mais engraçadas, irônicas e bem escritas que já li. Dado o insucesso da noite nupcial, malgrado as sucessias posições tomadas na cama, o mal estar se instalava, para ficar e tansformar-se em trauma duradouro. No entanto, Ela toma a palavra:
Inicialmente nos explicou, em seguida me explicou e finalmente se explicou, sempre com clareza e tato.
E quer descrição mais maravilhosa daquilo que nós mulheres fazemos, quando tomamos a palavra para falar da relação?
É claro que nem sempre primamos pela clareza, tampouco pelo tato, mas isso é devido às suscetibilidades da vida moderna... ou talvez porque não tenhamos feitos os cursos que Ela fez. Vejam:
Sua competência teórica era extensa por ter seguido com seriedade vários cursos de educação pré-nupcial, desde os assugurados pela paróquia da Consolação, até os administrados como matéria optativa pelos cursinhos que praparam os jovens para o ingresso na universidade. O motivo pelo qual seguiu tantos cursos, quando em geral as moças fazem um só, se explica pelo tempo que levou para se casar, mais de dez anos. Pois bem, durante esse período a ciência nupcial e seu ensino sofreram, como as demais ciências - notadamente a Linguítica e a Crítica - uma profunda alteração. Considerou Ela como seu dever de futura esposa renovar e atualizar anualmente a sua bagagem de conhecimentos nesse campo e a prova de que tinha razão foi dada nessa primeira noite, a qual sem sua cultura acumulada poderia ter me causado um trauma duradouro, talvez para o resto da vida.
Deposi do relato da fracassado noite de núpcias, novamente há aqui uma narrativa em dois tempos, separada pelos dois canets nos quais Pê escreve sobre Ela. E a descobre.
O livro é ao mesmo tempo uma leitura fácil, boa de se fazer no final de semana deitada na rede sob o sol. Daqueles que a gente lê e ri sozinha, e conversa com o estúpido do narrador. É, ao mesmo tempo, de uma profundidade arrebatadora. Porque constrói a ambientação de uma São Paulo burguesa, de sonhos pequenos, bairros e posses. Porque há um fio de tragédia e perda que sustenta as vidas nessa cidade, e porque não se entrega à tragédia, mas ao ridículo, e ri daquilo que fala. Porque fala do amor e da impossibilidade do amor, do casamento e da impossibilidade do casamento. Porque brinca com os acasos e brinca com a arquitetura da vida e do fazer literário.
Porque é putamente bem escrito , e só isso já é um prazer, raro e sem fim.
Nada como resumir tudo com a última frase...
ResponderExcluirOi Lulu,
ResponderExcluirAchei um texto que eu nao lia a muito tempo e coloquei no meu blog. Dauma olhada. achoque é a sua carinha tb..rsrs
Beijo,
Miranda
Vou parar de ler se blog.
ResponderExcluirSério.
Tudo que você conta aqui sobre leitura e cinema eu fico querendo ler e assistir e tal e não tenho tempo.
Bosta de faculdade.
=(
Janaína.
Ulisses,
ResponderExcluirpois é... escrevi, escrevi, mas no fundo o que queria mesmo dizer era aqui ali mesmo....
:-)
Miranda!
vou lá, agora! escuta, quando vc for comentar, preenche o espaço onde é para pôr o seu blog, porque aí todo mundo que ler pode ir também!:-)
Janaína!
olha lá, heim? ainda nem superei a falta da K, só falta vc me abandonar também!! :-)
(nooossaa.. essa foi um a chantagem daquelas, agora... :-) ) beeeijo!
Lu.