terça-feira, 19 de junho de 2007

O homem que matou o facínora





A chegada, o trem e o senador.


O filme, dirigido por John Ford, começa como tantos outros filmes de farwest: um trem atravessa a tela, chega a uma estação, pára. Dele, saem dois personagens, um homem e uma mulher.
O trem sempre acompanhou não só a história do velho oeste como também a do cinema. São clássicas as primeiras projeções dos irmãos Lumiére nas quais um trem atravessa a tela e fazia com que os espectadores corressem assustados, era primeira vez que se via uma imagem em movimento dentro de uma tela.

Em relação aos weasterns o trem representa sempre o progresso e a civilização, em contraposição a um mundo sem lei, governado por cowboys e pistoleiros, um mundo sem fronteiras, à espera da civilização. Há um filme perfeito para se analisar essa questão, No tempo das diligências, falo dele outro dia.

No homem que matou o facínora o tema da conquista do oeste é também presente, e talvez em nenhum outro filme clássico de bangue bangue esse tema seja trabalhado de forma tão profunda e acertada.

Quem chega no trem é um político, senador, um James Stuart envelhecido de maneira um tanto forçada, os cabelos brancos como a neve. O senador e sua esposa, Hallie. Logo abordado pelo jornal local, o senador deixa sua esposa a sós com um outro homem já velho que veio buscá-la, e vai dar entrevistas para o jornal. Por que viera? Para um funeral. Um funeral de um certo João Ninguém. Como assim? O senador é interpelado pelos jornalistas, tem que contar a história dohomem que morrera e que o trouxe à cidade de Shinbone.

Enquanto é entrevistado, a mulher pede ao senhor que veio buscá-la para adentrar no deserto. A cidade acaba, chega-se na fronteira na natureza, ainda do desconhecido, e nessa fronteira, no deserto, há uma casa abandonada e velha. Ao redor da casa, cactos floridos em profusão. Você já viu uma flor de cacto? Eu nunca havia visto, e a flor de cacto é um dos elementos centrais do filme. Com um cacto em flor Hallie era presenteada, quando jovem, por um outro homem.

Todos que conhecem o James Stuart sabem da certa cara de bobo que ele tem. O cara tem cara de inocente, de bom, essas coisas. O Hitchcock sabia disso super bem, e usava e abusava do certo ar naïve do rapaz. O senador é bom, correto e justo, logo se vê.







O passado, o deserto e o facínora.

Pois bem, a narrativa começa, e voltamos ao passado, ao tempo em que o trem ainda não chegava `a cidade, ao tempo em que James Stuart era novo e ainda tinha cabelos pretos, e tal.
O jovem Ranson Stoddart, o nome do personagem interpretado por James Stuart, um advogado recém formado, que chegar à cidade de Shinbone. Sua diligência é assaltada. Levam seu dinheiro, ele reage, apelando às forças da lei. A resposta: risos. Ali não há lei, a única lei é a da pistola e da bala. O que o jovem advogado carrega consigo? Livros. Livros de lei. E se recusa a carregar armas. Os livros são jogados ao chão, o chefe da quadrilha, que carrega consigo um chicote, bate e zomba do jovem advogado, que fica caído no chão, aos lados de seus livros, rasgados e jogados na lama.

Pronto, está dado todo o tema do filme.
A força das armas e da violência contra a força da lei, do conhecimento e da justiça.

Ranson
Stoddart, o personagem vindo do Leste, lutará para transformar a região em um Estado, o que significa ganhar fronteiras, direitos, escolas, o que significa ser regida pelas leis do Estado. Pela sua luta passa a alfabetização da população e a campanha pelo voto.

Até aqui, tudo um pouco esquemático, um tanto bobo. Mas então aparece a personagem do John Wayne, e um filme meio besta torna-se um filme de gênio.

Todos que conhecem John Wayne sabem a cara de meio mal que ele tem. Vamos combinar, o cara é todo torto, enrugado, essas coisas. Ali no filme está velho, rude. Seu personagem, Tom Doniphon, é o oposto de Ranson Stoddart. Não por ser fora da lei, pelo contrário, Tom Doniphon é honrado e bom. Ele é quem encontra Ranson na estrada, estragado pelos assaltantes. Leva o homem a um lugar onde sabe que ganhará cuidados, uma casa que oferece comida e bebida a todos da região. Nessa casa provedora está Hallie, por quem Tom é apaixonado. Claro, Stoddart se apaixonará por ela também. Tom Doniphon cuida de Ranson e logo lhe aconselha a carregar uma arma. Ranson Stoddart recusa-se, sua arma são os direitos pelos quais viera lutar.
Tom Doniphon é o melhor atirador da região. Só ele pode com o facínora, Liberty Valance, o homem que carrega consigo um chicote de prata. Só ele, com sua maestria, consegue impor alguma ordem e respeito àquela terra sem lei e sem ordem. Ele cuida das pessoas e protege a população.

A pistola e os livros.

O conflito que se estabelece entre Stoddart e Doniphon é o conflito entre a força e a lei. Um, Ranson Stoddart, acredita no poder das letras e da lei no processo civilizatório; Tom Doniphon acredita no poder da mão rápida no gatilho e de boa pontaria. Ambos querem o progresso, ambos querem que a região entre no mapa americano e deixe de ser terra de ninguém, controlada por criadores de gado. O caminho e os meios de um e de outro são diametralmente opostos.

Pois bem, pelo começo do filme, sabemos quem ganhou.
Ranson Stoddart tornou-se um senador respeitado e casou-se com Hallie. Tom Doniphon está sendo enterrado num caixão de madeira simples e anônima, sem suas botas e sem suas armas, sem honras e sem pompas, e no seu funeral há somente quatro pessoas.

E aí é que está. Tom Doiphon é o verdadeiro herói do filme. É ele o cowboy, e o cowboy é sempre solitário, e está sempre à margem. E o cowboy é sempre um bom atirador, e a ordem e a lei é sempre conquistada pelo tiro. Essa é a essência da conquista do oeste, e essa é a essência do filme. Na raiz da civilização e da conquista, na raiz da colonização de terras desconhecidas, esté sempre um ato de violência, e quem perpreta esse ato é o maior e mais emblemático herói americano de todos os tempos: o cowboy.

A história narrada pelo velho senador revelará a história apagada de Tom Doniphon. Que, ao final, será apagada novamente. Acompanhemos o filme.

Enquanto Tom Doniphon parte para o deserto para fazer seus negócios, Ranson se recupera, fica na hospedaria de Hallie, onde lava as louças em troca da comida e do abrigo que recebe. Logo começa a alfabetizar a população ( fato importante para que os moradores da região possam adquirir cidadania e assim, ter direito ao voto) e dar aulas sobre leis e direitos. Sua primcipal aluna é Hallie, que não sabia ler nem escrever.

É claro que o facínora, que representa os criadores de gado, a quem interessa a manutenção daquele lugar como um espaço de ninguém, sem lei, não gosta de nada disso e a certa hora chega à cidade para acabar com a festa.
A batalha de Ranson foi perdida. Nesse momento, a única alternativa que lhe resta é duelar com o facínora, enfrentar Liberty Valance não no voto, mas nas armas. O homem apaga a lousa de sua sala de aula vazia e pega em uma arma.

Vai à casa de Tom Doniphon, que procura ensiná-lo a atirar. Nessa outra aula, Ranson é humilhado por Tom, que ao mesmo tempo lhe lembra que Hallie é dele. Ranson, no entanto, dá um soco em Tom, e assim ganha seu respeito. O cara até que tem uma boa direita, e tem honra também. Os dois homens se separam.

Essa cena prenuncia o mote do filme inteiro, o futuro senador só conseguirá de fato o respeito e a força quando mostrar que detém também o poder da violência.

A noite do duelo chega. Todas as casas estão fechadas, ninguém sai às ruas. Toda a grandeza de John Ford monta um clima tenso, o final de Ranson parece evidente. O homem cambaleia, mal consegue segurar sua pistola.
Surpresa das surpresas, Ranson acerta o único tiro que dá, e mata o facínora, mata Liberty Valance. Ranson Stoddart torna-se uma lenda.

A partir daí, sua carreira ascende, é eleito representante da cidade, consegue o Estado, torna-se governador e depois senador por dois mandatos consecutivos.

A verdade e a lenda.

Voltemos à cena do duelo. à sombra, escondido, atrás de uma parede, está Tom Doniphon.
É dele o tiro que matara Liberty Valance, é ele The man who shot Liberty Valance ( título do filme em inglês). Tom permanece na sombra, não conta para ninguém da sua façanha. Queima sua casa, perde sua mulher, e conhecemos seu final. Somente Ranson sabe a verdade. A verdade que agora é contada.

Voltamos ao presente. O senador, de cabelos brancos, diz ao jornalistas que o ouvem, atônitos: agora vocês sabem a verdade, podem imprimi-la.
O editor do jornal rasga a entevista e diz uma frase que tornou-se clássica:

- Senhor, aqui é o Oeste, diz ele. Quando uma lenda torna-se um fato, publicamos a lenda.

Ranson sai da sede do jornal. Em cima do caixão pobre, um cacto florido, colocado ali por Hallie.
O funeral está no fim.
Ranson e Hallie esperam o trem. A região está totalmente diferente, junto com a civilização, chegaram escolas, comércio, a cidade cresceu, até o deserto floresceu. Aparece um homem, um cidadão, que vem cumprimentar o senador. E diz: que honra comprimentar o homem que matou o facínora.

Close para o olhar melancólico de Ranson. Nenhum de seus feitos como político é lembrado. Sua fama, a estrutura da sua força, o pilar de toda a sua carreira está no fato de que fora ele quem matara o facínora. Tom Doniphon estava certo.

E assim, o filme torna-se grandioso.

Porque tematiza a questão da política, da criação da lenda, da mentira sobreposta aos fatos. Porque mostra que no cerne da Lei está, sempre, um ato de violência. Que o passo para a "civilização" não pode ocorrer sem que escorra sangue. Que o poder dos livros e da lei não é suficiente. O homem tem que ter matado o facínora, com suas mãos. Tem que vencer o duelo. Depois vem a lei, depois vêm as letras.

A figura do senador é a mais melancólica possível. Ele é, na verdade, um perdedor, pois seu projeto não vingara.

Na essência da conquista do oeste, da entrada da Lei e da civilização, da conquista da fronteira, está sempre a violência e a força, reforçadas pela imprensa, pelos meios de comunicação, onde a lenda ganha da verdade.

E não é sempre assim?



O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), 1962. Diretor: John Ford. Elenco: James Stewart, John Wayne, Vera Miles, Lee Marvin, Edmond O'Brien, Andy Devine, John Carradine, Woody Strode.

7 comentários:

  1. Façamos assim: ambos nossos blogs são legais.

    Post sensacional sobre um filme sensacional. Vi quando ainda era criança. Logo aprendi que nada supera um bom faroeste. Principalmente este que serve mea culpa e expiação para todo o império norte-americano...

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  2. Lulu, minha gênia.
    Olhe só como foi bom ter adiado o post para hoje;-)

    Eu estou caindo de sono, mas queria comentar logo e dizer o quanto o seu filme/post tem de antropológico. E ontológico também.
    Não sei, não tenho certeza se concordo com afirmações como esta
    "no cerne da Lei está, sempre, um ato de violência" - na verdade é por causa do ato violento que nasce a Lei;-) e outra afirmação que agora não encontro, mas que diz que esse filme é paradigmático. E claro que reparei em Lei com maiúscula.
    Mas não ligue para isso: os filmes de John Ford são absolutamente todos geniais (alguém me diria um que não tenha sido, que não seja?)e nos levam a pensar que ele está fazendo o melhor de tudo quanto já se fez antes.
    O que às vezes é verdade, mas nem sempre.
    -=-=-=
    O "bom perigo" desse seu post é você ter analisado ( a crítica anlítica é indutiva) e ter feito isso de uma maneira tão brilhante que não deixa à maioria dos seus leitores nenhuma alternativa a não ser a de ficar , de boca aberta (boquiabrindo-se e sem querer boquifechar-se) e concordar.
    Pois sim, SIM é a resposta.;-)
    Claro, afinal o "velho vienense" não disse exatamente isso?
    Tem sido, sim. É sempre assim, sim. É uma pergunta que não questiona. é uma pegunta que leva à concordãncia.
    Tirando isso, no meu pobre e fraco entendimento ou como eu dizia antes IMSHO, só resta declarar você como a nossa Pauline Kael.
    O que me dá um baita orgulho, querida.
    Parabéns e um beijo.
    Sleep tight!
    M.
    P.S Espero que vc e todos compreendam que meu objetivo em escrever isso, é uma provocação para que se discutam as linhas de força do filme e não, de modo algum, achar defeitos em seu post,
    ( "pelamor":-) que se lê com gosto e com admiração, tá bem?
    Então?
    M.

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  3. O que terá nascido antes: A lei ou a violência?


    Gostei deste questionamento...e de todo questionamento o melhor não é a resposta e sim a reflexão sobre, penso eu, cá com meus botões...

    Pra quem detesta filmes de faroeste, sente uma angústia, uma depressão, uma solidão árida sem explicação quando assiste filmes assim, até que eu me interessei meio demais pelo seu post...

    Adoro anti-heróis e talvez seja isso. Seu texto está muito bem escrito e talvez seja isso.

    Outro questionamento fera é este entre a lenda e a verdade, aí eu me lembro dos simbolistas e do mito da caverna (tava dando aula sobre isso segunda-feira) e me pergunto se existe verdade e aí o Foucault olha feio pra mim lá do além e diz: "verdade é uma criação social e só existe como tal."

    Bem, mas existe, mesmo que falsa então não deixa de ser meio fictícia, assim como lenda, será tudo lenda?

    Volto a dizer: este blog me faz pensar...


    Abraço!

    Janaína.

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  4. FELIPE
    Obrigada! bacanas esses encontros.

    MEG

    Vixi maria!! ( pelos elogios)

    agora, sobre o debae, a respeito a da lei e da violência.

    MEG E JANAÍNA,

    eu penso sim que a lei só pode ser fundada e exercida por causa da possibilidade da violência que lhe é inerente. Na verdade pensei muito num filósofo o Giorgio Agambem, para fazer esse post, e ele fala um pouco isso, quando define o que é soberania. Hum... acho que isso dá mais um post.
    Vamos ver!
    :-)

    umbeijo grande a todos,

    Lulu.

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  5. Ah, nem vou escrever a respeito. Como disse o Felipe: post sensacional sobre filme sensacional.

    E vi há pouco tempo. Comprei numa oferta!

    Beijo

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  6. Lulu,
    não achei que era auto-promoção nenhuma, e sim um gesto de carinho e de extrema atenção, ir lá no comment e avisar desse seu maravilhoso texto deste que é um dos meus 10 westerns preferidos - está lá, em quarto lugar, mas está :)
    A Marcele já conhecia esse blog aqui, eu estou conhecendo agora. A frase do personagem vivido pelo Edmond O'Brien para mim é uma síntese de tudo. Me parece que vários traduzem de maneiras diferentes, eu sempre vi (erradamente) como "Se a lenda É MELHOR QUE os fatos, imprima-se a lenda". Creio ter mais a ver com o jornalismo atual...
    Mas é isso aí mesmo, é "BECAME" a legend, embora todo mundo goste de citar "é melhor" que os fatos.

    beijos meus e da Marcele

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  7. Nicholas,
    é uma honra a visita tua e da Marcele. Sou fã do Eclipse,do nome, da idéia, dos textos de vocês.

    Sabe que agora eu acho que tenho que assistir de novo? para ouvir direitinho a frase? Porque sou meio distraída, nem vi o Homem que matou o facínora lá na sua lista.. é, meu marido diz que eu não passei nem no teste de massinha da segunda série...um espanto.

    e o pior é que estou aqui com sete homens e um destino, bem ao meu lado, e bem ao lado de os sete samurais... mas vou contar prá vcs, resenhar esses dois aí, tá foda.

    Beijos grandes para você e Marcele,
    obrigada pela visita e comentario! Que bom!
    Lulu

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