quarta-feira, 6 de junho de 2007

Demografia das personagens do romance brasileiro contemporâneo

Saiu hoje, no Estado de São Paulo uma reportagem interessantísima sobre uma pesquisa que vem sendo realizada do departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, iniciada no segundo semestre de 2003. A pesquisa procura mapear quem são as personagens do romance brasileiro contemporâneo. A primeira etapa da pesquisa contemplou os romances publicados entre 1990 e 2004, a segunda etapa, finda agora, estudou os romances de 1965 a 1979. A intenção era fazer uma análise comparativa entre os romances publicados durante a ditadura e os contemporâneos, daí a exclusão da década de oitenta.

No site do Estado está a matéria na íntegra, disponível para assinantes, aqui, ( Um universo limitado e excludente").
No mesmo site, é possível baixar o resumo da primeira etapa do trabalho, feita sob a coordenação da professora do departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, Regina Dalcastagnè: A personagem do romance brasileiro contemporâneo – 1965/1979 e 1990/2004.
Como o trabalho está disponível para download, baixei e cito aqui, sempre em ítalico e entre aspas, alguns trechos, assim como algumas das tabelas.

Sobre a continuidade do projeto:

"Uma terceira etapa, em andamento, foca com mais atenção as personagens femininas e amplia a base de comparação também para o cinema do período 1990-2004, para o teatro de 1965 em diante (sob a coordenação do prof. André Luís Gomes) e para o cânone literário brasileiro (sob a coordenação da profª Maria Isabel Edom Pires). Paralelamente, e extrapolando a questão da personagem, vem sendo realizada também uma pesquisa que pretende mapear a produção poética contemporânea (sob a coordenação da profª Sylvia Helena Cyntrão)." (p.1)

Aqui é possível ler a íntegra da pesquisa assim como todas as tabelas. As tabelas também estão disponíveis no site do Estadão, assim como a íntegra do depoimento de várias personalidades do mundo das letras sobre a questão.

mas olhemos os resultados obtidos ( os subtítulos são meus) :

O principal perfil das personagens estudadas é o de um homem, branco, da classe média, heterossexual, intelectualizado, sem deficiências físicas ou doenças crônicas, morador dos grandes centros urbanos.

a metodologia utilizada:

"A pesquisa fez uma espécie de recenseamento das personagens de todos os romances publicados no Brasil entre 1965-1979 e 1990-2004 pelas editoras mais importantes dos dois períodos: Civilização Brasileira e José Olympio para o primeiro intervalo e Companhia das Letras, Record e Rocco para o segundo. Foram estudadas, ao todo, 1754 personagens de 389 romances, escritos por 242 autores diferentes. (...)

algumas das conclusões:

"O romance brasileiro possui como chão o Brasil contemporâneo. Teoricamente, seria uma indagação aos nossos tempos, falaria de nossas ansiedades e de nossas fantasias. E o faz, desde que esse nós seja entendido como uma classe média branca, masculina, heterossexual, intelectualizada, sem deficiências físicas ou doenças crônicas e moradora dos grandes centros urbanos – esse o perfil principal das personagens contemporâneas, e quase tudo que não se encaixa aí, quando aparece, fica relegado a posições inferiores na narrativa, sem voz e muitas vezes estereotipado. Ou seja, nosso universo literário é bastante limitado e excludente, assim como é reduzida a variedade de perspectivas sociais entre nossos escritores."(p.1)

observações importantes:

"Ao fazer essa constatação, a pesquisa não insinua, absolutamente, qualquer restrição do tipo quem pode falar sobre quem. Tampouco advoga alguma idéia ingênua de mimese, com escritores consultando os dados do IBGE para escrever seus livros. A pesquisa não tem o objetivo de policiar a atividade dos autores brasileiros, mas apenas mostrar e entender o que o romance recente – aquele que passa pelo filtro das grandes editoras, atinge um público mais amplo e influencia novas gerações de escritores – está escolhendo como foco de seu interesse, o que está deixando de fora e como está representando determinados grupos sociais. Pretende dar uma visão de conjunto, por isso não traz, nem mesmo de forma implícita, a intenção de condenar qualquer obra singular, ou de negar a existência de narrativas com outras perspectivas.(p.1)"

a análise de alguns resultados:

(...)
As personagens ( na década de noventa) continuam sendo quase todas brancas – na verdade, a proporção de brancos até aumenta no período mais recente (tabela 17), e ainda mais nas posições de protagonista e narrador (tabelas 18 e 19). Apenas no período 1990-2004, porém, aparecem personagens negras do sexo feminino como protagonistas e narradoras (tabelas 20 e 21). Por outro lado, a pequena ampliação na proporção de personagens negras (que passam a superar as personagens “mestiças”) pode ser creditada ao aumento no número de bandidos e contraventores retratados nos romances mais recentes (tabelas 24 e 25), o que, sem dúvida, é revelador do estereótipos que eles reproduzem.

A predominância de heterossexuais diminui um pouco (tabela 26); mais importante, porém, é perceber que, entre 1965-1979 e 1990-2004, as personagens homossexuais passaram a ocupar, ainda que de forma tímida, posições de protagonista e narrador (tabelas 27 e 28).

Entre 1965-1979 e 1990-2004, os pobres perdem espaço no romance brasileiro, que se concentra ainda mais nas classes médias e, ao mesmo tempo, dá mais espaço a personagens das elites econômicas (tabela 29)." (p.4)

Algumas das tabelas: (deve-se observar que o número total de romances publicados na década de noventa é maior que o da década de 60)


Tabela 20: Sexo, cor e posição das personagens (1965-1979)


Protagonistas

narradores


brancos

negros

brancos

negros

homens

40

1

19

-

mulheres

66

6

30

-

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 21: Sexo, cor e posição das personagens (1990-2004)


Protagonistas

narradores


brancos

negros

brancos

negros

homens

206

17

107

4

mulheres

83

3

52

1

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 22: Principais ocupações das personagens brancas (1965-1979)

dona de casa

44

11,4%

sem ocupação

35

9,4%

Estudante

31

8,0%

sem indícios

26

6,7%

Comerciante

21

5,4%

artista (teatro, cinema, artes plásticas, música)

17

4,4%

profissional do sexo

17

4,4%

Religioso

17

4,4%

Escritor

16

4,1%

Professor

16

4,1%

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 23: Principais ocupações das personagens brancas (1990-2004)

dona de casa

97

9,8%

artista (teatro, cinema, artes plásticas, música)

84

8,5%

escritor

69

6,9%

estudante

68

6,8%

sem ocupação

63

6,3%

professor

61

6,1%

jornalista, radialista ou fotógrafo

54

5,4%

sem indícios

48

4,8%

comerciante

47

4,7%

bandido/contraventor

32

3,2%

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 24: Principais ocupações das personagens negras (1965-1979)

doméstico(a)

5

15,6%

dona de casa

4

12,5%

assalariado rural

2

6,3%

bandido/contraventor

2

6,3%

enfermeiro/massagista

2

6,3%

escravo

2

6,3%

pedreiro

2

6,3%

professor

2

6,3%

sem ocupação

2

6,3%

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 25: Principais ocupações das personagens negras (1990-2004)

bandido/contraventor

20

20,4%

empregado(a) doméstico(a)

12

12,2%

escravo

9

9,2%

profissional do sexo

8

8,2%

dona de casa

6

6,1%

artista (teatro, cinema, artes plásticas, música)

6

6,1%

estudante

5

5,1%

escritor

4

4,1%

governante

4

4,1%

mendigo

4

4,1%

oficial militar

4

4,1%

professor

4

4,1%

religioso

4

4,1%

não pertinente

4

4,1%

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 26: Orientação sexual das personagens


1965-1979

1990-2004

heterossexual

88,8%

81,0%

homossexual

2,0%

3,9%

bissexual

2,0%

2,4%

assexuado

0,4%

2,0%

ambígua/indefinida

0,4%

1,9%

não pertinente

0,6%

1,4%

sem indícios

5,7%

7,4%

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 27: Orientação sexual e posição das personagens (1965-1979)


protagonista

coadjuvante

narradora

heterossexual

94,7%

86,1%

95,5%

homossexual

-

2,8%

-

bissexual

2,0%

2,0%

1,5%

assexuado

0,7%

0,3%

-

ambígua/indefinida

-

0,6%

-

não pertinente

-

0.8%

-

não mencionada

2,7%

7,1%

3,0%

outra

-

0,3%

-

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas na variável “posição”.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 28: Orientação sexual e posição das personagens (1990-2004)


protagonista

coadjuvante

narradora

heterossexual

83,3%

80,3%

76,5%

homossexual

3,8%

3,9%

4,4%

bissexual

2,9%

2,2%

3,8%

assexuado

1,5%

2,2%

1,1%

ambígua/indefinida

3,2%

1,3%

3,8%

não pertinente

0,6%

1,7%

1,6%

não mencionada

4,7%

8,3%

8,7%

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas na variável “posição”.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 29: Estrato sócio-econômico das personagens


1965-1979

1990-2004

elite econômica

23,2%

31,5%

classes médias

45,8%

51,4%

pobres

33,6%

23,9%

miseráveis

3,1%

2,9%

sem indícios

1,0%

1,8%

não pertinente

0,6%

0,8%

Obs. Eram permitidas múltiplas respostas.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 30: Estrato sócio-econômico e cor das personagens (1965/1979)


elite econômica

classes médias

pobres

miseráveis

sem indícios

não pertinente

branca

27,6%

51,4%

25,8%

2,1%

0,5%

-

negra

6,3%

15,6%

78,1%

9,4%

-

-

mestiça

9,4%

39,6%

54,7%

3,8%

-

2,0%

indígena

-

12,5%

62,5%

12,5%

-

12,5%

oriental

100%

100%

-

-

-

-

sem indícios

4,5%

18,2%

54,5%

9,1%

13,6%

-

não pertinente

33,3%

33,3%

-

-

-

33,3%

total

23,2%

45,8%

33,6%

3,1%

1%

0,6%

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas na variável “estrato sócio-econômico”.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Tabela 31: Estrato sócio-econômico e cor das personagens (1990/2004)


elite econômica

classes médias

pobres

miseráveis

sem indícios

outro

não pertinente

branca

36,2%

56,6%

15,5%

1,8%

1,6%

0,1%

0,2%

negra

10,2%

16,3%

73,5%

12,2%

1,0%

1,0%

-

mestiça

19,7%

42,1%

52,6%

5,3%

1,3%

-

-

indígena

26,7%

20,0%

53,3%

6,7%

-

13,3%

6,7%

oriental

25,0%

37,5%

50,0%

-

-

-

-

sem indícios

2,3%

50,0%

40,9%

2,3%

6,8%

-

-

não pertinente

-

10,0%

10,0%

-

10,0%

-

70,0%

total

31,5%

51,4%

23,9%

2,9%

1,8%

0,3%

0,8%

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas na variável “estrato sócio-econômico”.

Fonte: pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

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3 comentários:

  1. Lulu, vim através da indicação da Meg e que prazer! Voltarei sempre. Vou observar a pesquisa atentamente. Todos os dados são importantes para a gente refletir se o romance retrata a realidade brasileira de fato, ou se estamos voltando à idealização romântica.
    beijo,menina

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  2. Eu ia falar que pode ser consequencia da "exclusão" de uma grande parcela dos negros, um problema que vem lá do começo dos livros de história e que tem suas consequencias até hoje.
    Mas é também falta de imaginação. Acredito (não tenho nenhum dado concreto pra falar isso, é apenas uma impressão) que a maioria dos escritores seja branca. O escritor tem em suas mãos o poder de inventar a realidade que ele quiser e, no entanto, parece ser sempre a mesma coisa.

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  3. um leitor meu trabalha com ela e tenho acompanhado essa pesquisa com interesse... eh muito interessante..

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